Pular para o conteúdo

CLUBE DA HISTORIA EM : Uma cidade verde

clube

Em tempos, houve um edifício nesta zona. Tinha três andares e estava vazio e entaipado. A minha amiga, a Menina Rosa, disse que vivia lá um homem a quem chamam o Velho Martelo, juntamente com outras pessoas. Mas, quando lhe fiz perguntas sobre o edifício, ele apenas resmungou qualquer coisa entredentes. O Velho Martelo é assim mesmo: duro como pregos.

No ano passado, recebemos a visita de duas pessoas da cidade, todas engravatadas e carregadas de papéis. Num tom solene, declararam: — Este edifício não é seguro e vai ter de ser demolido. Por volta do inverno, já tinham estacionado uma grua junto dele.

A minha mãe reuniu toda a gente na nossa janela da frente para assistir. Bastaram três pancadas para o reduzir a um monte de escombros. Em seguida, veio um camião e alguns trabalhadores levaram o lixo, enchendo depois o buraco com terra. O quarteirão ficou a parecer uma boca sorridente com um dente a menos. O Velho Martelo, sentado no seu banquinho, abanou a cabeça: — Tempos houve em que aquele edifício podia ter sido salvo.

Mas ninguém tentou fazê-lo. Todos os dias, sempre que passava por lá, sentia-me triste com a visão daquela cratera. Todos os dias. Quando chegou a primavera, a Menina Rosa começou logo a limpar as suas latas de café. Ambas temos latas de café nos nossos parapeitos e, todos os anos, compramos dois pacotes de sementes na loja de ferragens.

Por vezes compramos malmequeres, outras vezes zínias. Já chegámos a tentar com tomates. Vamos até ao parque, recolhemos alguma terra e enchemos as latas até meio. Este ano, o Velho Martelo deteve-nos quando íamos a caminho do parque e disse: — Este buraco aqui tem terra que chegue para vocês. Olhei para a Menina Rosa que, sorrindo para mim, concordou: — Lá isso tem. Muita terra. — Como se fosse uma grande lata de café — comentei. Foi então que decidimos fazer algo em relação àquele pedaço de terreno. Sem perder tempo, comecei a escavar e a pensar em jardins e flores.

Mas o Velho Martelo avisou-me: — Olha que não podes extrair mais terra do que essa. Este terreno pertence à cidade. A Menina Rosa e eu fomos ter com o Senhor Bennett, que costumava trabalhar para a câmara. — Acho que existe um programa que ajuda as pessoas a arrendar lotes de terreno vagos — recordou. E foi assim que a Menina Rosa e eu formámos uma associação no nosso bairro e fizemos circular uma petição que dizia QUEREMOS ARRENDAR ESTE TERRENO.

Em menos de uma semana, recolhemos imensas assinaturas. — Não quer assinar? — perguntei ao Velho Martelo. — Eu cá não assino nada. E já te digo que não vai acontecer nada — decretou. Mas aconteceu. Na semana seguinte, alguns de nós apanharam um autocarro para ir à câmara.

Entrámos do departamento correspondente e entregámos a nossa petição à funcionária. Esta verificou os arquivos, digitou alguns comentários e fez fotocópias. Pagámos um dólar. E, nesse mesmo dia, passámos a ser arrendatários daquele terreno. Um processo tão simples quanto este. No sábado de manhã, acordei com o sol e pus-me a olhar para o terreno. A minha mãe também o contemplou e, abraçando-me, disse: — Marcy, hoje vou ajudar-vos. Depois de ir às compras, a minha mãe esvaziou os sacos, dobrou-os, e colocou-os debaixo do braço. Depois, virando-se para a amiga, disse: — Venha comigo, Sra. Bea. Vamos lá limpar aquele terreno.

O meu irmão também quis ajudar. Apesar de ser alto e forte, não se mostrou convencido. Até parecia o Velho Martelo. Mas a minha mãe avisou-o logo: — Atitudes pessimistas não são connosco. O que fez com que, durante todo o dia, ele enchesse aqueles sacos de lixo e os levasse até junto do passeio.

Os vizinhos que passavam por nós e que tinham algum tempo livre ofereciam-se para ajudar. E cada um trazia mais outro. — Venha ajudar-nos! — pedi ao Velho Martelo. — Eu cá não ajudo ninguém. Vocês estão é a perder tempo — sentenciou. Mesmo antes da hora de jantar, a minha mãe elogiou-me: — Filha, o que estás a fazer é fantástico! No dia seguinte, a câmara emprestou-nos ferramentas, tais como ancinhos e vassouras, e um contentor para colocarmos o lixo. Havia cada vez mais vizinhos a ajudar.

Todos cumprimentámos o Velho Martelo, que enxotou a nossa saudação como se fosse uma mosca. O meu irmão perguntou: — Por que motivo está o Velho Martelo tão rezingão? — Talvez esteja triste — respondi. — Talvez sinta a falta do velho edifício. O meu irmão encolheu os ombros: — Daquela velharia? Devia era estar contente por a cidade se ter visto livre dele. — Dá-lhe tempo — aconselhou a Menina Rosa. — As coisas boas levam o seu tempo… O Sr. Bennett trouxe madeira — ripas velhas que guardara — e um copo com pregos. — Bem me parecia que os tinha guardado para alguma coisa — disse. — Esta madeira é das boas.

Em seguida, veio o Senhor Rocco, que mora duas casas abaixo, com duas latas de tinta. — Como a cor é demasiado berrante, nunca a vou usar em casa. Mas este sítio precisa de alguma alegria… Qualquer pessoa que por ali passasse se daria conta de que algo de excitante estava a acontecer. Todos queriam dar ideias sobre o que plantar: morangos, cenouras, alfaces, tulipas, margaridas e petúnias.

O Sonny ia virando a terra com uma pá de remover neve e até o bebé da Leslie tentou cavar com uma colher. A Menina Rosa trouxe-nos leite, pão e geleia para o almoço, e colocou tudo sobre uma toalha de praia num lugar onde já não havia lixo. Quando o dia chegou ao fim, já tínhamos construído e pintado uma sebe de madeira. À noite, quando me deitei, a minha mãe foi dar-me um beijo e fechar a porta do meu quarto. À luz dos candeeiros da rua, vi o Velho Martelo descer os degraus e abrir o portão.

Dirigiu-se às traseiras do terreno e, debruçando-se, tirou rapidamente algo do bolso que lançou à terra e logo cobriu. Na manhã seguinte, contei ao meu irmão o que vira. — A tua vontade é tanta que deves ter sonhado, Marcy — foi o comentário dele. Mas eu sabia que não sonhara, e disse à minha mãe: — O Velho Martelo esteve a plantar sementes. Depois do pequeno-almoço, fui às traseiras do terreno e vi um montinho de terra, muito liso e arranjado, igualzinho aos que tínhamos plantado.

Tive logo a certeza de que o Velho Martelo tinha plantado alguma coisa. Dei uma pancadinha de boa sorte no montículo e ergui uma pequena sebe para resguardar aquelas sementes. Comecei a ir todos os dias ao nosso jardim. Os vizinhos também. Certo dia, a Sra. Wells parou junto de mim e disse: — O quarto da minha avó ficava mesmo neste sítio. Por isso plantei as minhas flores neste lugar. Senti-me triste ao ouvir aquelas palavras. Com tanto escavar, plantar, mondar e regar, esquecera-me de que naquele local tinha havido um edifício. O Velho Martelo também lá tinha vivido.

Fui até junto da parte traseira do terreno e perguntei-me se o quarto dele teria sido ali. Quando olhei para a terra, reparei que havia pequenos rebentos a querer emergir. As sementes do Velho Martelo tinham crescido! Fui ter com ele e pedi-lhe: — Venha comigo! Há uma coisa que vai gostar de ver! Passámos pelas malvas-rosas, pelos malmequeres, pela pimenta, pelas alfaces, e mostrei-lhe os morangos que plantei. Quando o Velho Martelo viu o seu canteirinho, ficou feliz: — Sabes, Marcy, este terreno não prestava para nada. Agora é bom para tudo. Em breve, chegou o verão.

O nosso terreno estava cheio de legumes, plantas aromáticas e flores. Nas traseiras, um belo quadrado de girassóis impunha a sua presença. Agora, o Velho Martelo vem vê-lo todos os dias. Senta-se ao sol, come o almoço e, às vezes, regressa com o jantar. Ninguém sabe de onde vieram os girassóis. Mas o Velho Martelo e eu sabemos quem os plantou. DyAnne DiSalvo-Ryan City Green HarperCollins Publishers, 1994 (Tradução e adaptação)