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Blog do Vavá da Luz

CLUBE DA HISTORIA EM : Um punhado de cerejas

 

António era ajudante de padeiro. Trabalhava todas as noites até ao amanhecer: preparava a massa, aquecia o forno e cozia o pão. Quando o dia começava a clarear, António enchia de pão, ainda quente, dois grandes cestos. Em seguida, ia à estrebaria buscar a mula branca de nome Farinha. Sobre o seu lombo punha dois grandes alforges, e neles os cestos do pão. Depois, quando o sol despontava por trás da colina, António punha-se a caminho das povoações do vale, para fazer a distribuição.

Naquela manhã, António ia a cantar. O verão tinha começado, o dia amanhecia radiante e ele sentia o coração alegre. Numa curva do caminho deparou-se, de repente, com a carroça, enterrada, do tio Curro. — O que é que aconteceu? — Um cão saiu de entre as silvas a ladrar e este cavalo parvo espantou-se. Olha, a roda foi para dentro desse buraco. Não sei como vou tirar a carroça deste atoleiro. — Farinha e eu ajudamos-te. E com tão boa vontade e tanta força o ajudaram que, em menos de três minutos, a carroça estava, outra vez, no meio do caminho. — Já pode seguir, tio Curro. Vai à praça, não é? — Sim, vou vender fruta. — Que lhe corra bem a venda.

— Obrigado, rapaz. Ouve lá, gostas de cerejas? — Claro que sim! O tio Curro pegou no guardanapo que cobria a cestinha em que levava a sua comida, estendeu-o e encheu-o de umas mancheias de cerejas. Depois, atou as pontas cuidadosamente. A — Toma lá. Ganhaste-as bem. Sem a tua ajuda eu não teria podido tirar a carroça. — Farinha também puxou bem… — Dá umas quantas à mula! — Assim farei. Muito obrigado! — De nada, rapaz. Até à vista! O tio Curro pôs-se a caminho da praça e António lá seguiu de novo em direção às povoações do vale. Levava na mão o molho das cerejas, e sentia água na boca só de pensar nelas: tão vermelhas, grandes, tão brilhantes… Começou a desfazer um nó.

Mas pensou melhor… À avó Francisca já lhe faltam bastantes dentes e só pode comer coisas moles e líquidas… Entrou na sala onde a avó Francisca tecia. — Aqui está o pão, avó. E trago-lhe também uma prenda. — Oh, António! São as primeiras cerejas que vejo este ano! Muito obrigado, filho! António saiu da sala para continuar o seu trajeto. A tecedeira voltou ao seu trabalho. Como as cerejas ao almoço, decidiu. E continuou a tecer. Mas, enquanto estava a tecer, pensou melhor… A minha irmã Maria anda sempre a dizer que o vapor dos corantes lhe deixa um sabor amargo na boca… Na tinturaria ferviam enormes caldeiros com líquidos de cores diversas: azuis, vermelhos, verdes, alaranjados.

No pátio, grossas fiadas de lã, já tingidas, estavam postas a secar. A tecedeira disse: — Olha, irmã, o que te trago. — Que apetitosas! Muito obrigada, mas tu gostas bem de cerejas. — Gosto mais que te adocem a boca a ti. A avó Francisca regressou a casa e a tintureira foi até à fonte do pátio para lavar as mãos antes de comer as cerejas. E, enquanto as lavava, pensou melhor… O Pedro leva já muitas horas de trabalho. Deve estar com sede… E, sem hesitar mais, chamou a pequenita Ana e entregou-lhe as cerejas. — Ouve, filha, faz-me um favor. Leva isto ao teu irmão. Pedro estava a acabar de soprar uma bonita peça de vidro. — Olha, cerejas, são para ti! — gritou Anita. — E mostrou-lhas. — Que boa cara que têm! Vou-as comer agora mesmo.

Mas não o fez. Continuou a soprar até terminar de moldar a peça. E, enquanto o fazia, pensou melhor… — Olha, Ana, lá em baixo, no prado junto ao rio, anda a Clara a guardar o rebanho. Queres lá ir levar as cerejas da minha parte? Anita olhou para o irmão com um gesto cómico. Mas depois disse que sim e afastou-se a sorrir. Os olhos de Clara brilharam de alegria ao ver a bonita fruta que lhe enviava o seu noivo. — Que cor tão linda têm! Agradece ao Pedro por mim. Clara foi para junto do carvalho grande, disposta a sentar-se à sombra e a comer as cerejas. Mas então pensou melhor… O meu pai está na serração… Deve apetecer-lhe alguma coisa fresca… Deixou o rebanho ao cuidado dos cães e aproximou-se a passo ligeiro da construção que se erguia à beira-rio. O barulho da serra era ensurdecedor.

No ar pairava o áspero e penetrante cheiro a madeira recém-cortada e havia montes de serrim por toda a parte. Clara mostrou o que trazia, e o pai agradeceu-lhe com um sorriso e um piscar de olho carinhoso. Também disse qualquer coisa, mas as palavras perderam-se no som da serra contra a madeira. Clara voltou para a beira do rebanho e o seu pai disse para consigo: Mal acabe este tronco, vou comer as cerejas. Mas, quando cortou a última tábua, já tinha pensado melhor… Levo-as à minha nora Teresa. Uma mulher que está a amamentar tem de comer fruta fresca… De modo que parou a serra e dirigiu-se à casa do filho. — Olá Teresa, como está hoje o meu neto? — Muito bem, mas um pouco chorão! — Trouxe-te isto. Olha que bonitas! — Cerejas para um bebé? — brincou Teresa. — Não são para a criança. São para a mãe da criança. — Muito obrigado! Como-as logo que consiga que este rapaz adormeça. Mas, enquanto o embalava, pensou melhor… O meu irmão deve estar quase a chegar a casa… E logo que o pequenito começou a dormir, saiu em bicos de pés e atravessou a rua. — Olha o que trago, mãe.

O António vai chegar sufocado depois da azáfama de toda a manhã. E já que gosta tanto de cerejas… E voltou a correr para casa, para a beira do filho. António ficou bastante admirado ao ver as cerejas. Não compreendia porque a avó Francisca lhas devolvia. — Não sei o que se passou — disse, coçando a cabeça. — Filho, não é difícil de entender! A tua irmã Teresa deu-te esta prenda, é simples. António vinha cansado. Tinha trabalhado quase toda a noite e feito uma longa caminhada pelo vale durante a manhã. Não tinha muita vontade de falar. Limitou-se a assentir com a cabeça e a sorrir. E começou a comer… À sobremesa, pegou nas cerejas que a mãe havia lavado em água fresca.

Eram mesmo doces e suculentas! Quando comeu a última, deu uma forte palmada no joelho: — Caramba! Esqueci-me de dar umas quantas à Farinha! Bem as ganhou! Foi a vez de a mãe se admirar agora. Morta de curiosidade, principiou a fazer mil perguntas. — Por favor, mãe. Pergunta à Teresa… e depois vai perguntando. No fim contas-me, está bem? E foi dormir a sesta, que bem a merecia. A mãe começou a inquirir a vizinhança, averiguando… e quanto mais averiguava, mais admirada ficava… Entretanto, António dormia e sonhava… Sonhava que era ajudante de padeiro e que trabalhava toda a noite: fazia a massa, aquecia o forno, cozia o pão… E que lá fora, no pátio, Farinha comia cerejas, muitas cerejas, montes de cerejas!

 

María Puncel Un hatillo de cerezas Madrid, SM, 1984 (Tradução e adaptação)