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CLUBE DA HISTORIA EM : Um mundo que mata o sonho

Um mundo que mata o sonho
Não podemos aceitar que os jovens cresçam sem esperança,
sem grandes ideais e grandes sonhos.
É esta a maior acusação que podemos – e devemos –
dirigir contra este nosso mundo.
Não se pode dizer que a Lucy seja bonita, mas tem duas orelhas em forma de abano e um
sorriso travesso que a tornam irresistivelmente simpática. Tem só 12 anos, e uma experiência de
vida que vale ao menos por uma centena. Hoje, no entanto, a fome e os abusos foram deitados
para trás das costas, e alegremente toma-me pela mão para me levar a conhecer o último hóspede
chegado à Casa de Anita, um vitelinho que está ainda a aprender a segurar-se nas quatro patas
difíceis de coordenar.
Este ano choveu muito e as colinas do Ngong, onde se situa a Casa, ostentam todas as
tonalidades do verde. A Casa cresceu, e as três famílias que acolhem as meninas abriram-se
generosamente a novos hóspedes. Para se juntar às outras, chegou mais uma pequenina que mal
tem um ano de idade, abandonada ao lado da cancela do grande horto.
Era um domingo de manhã e ainda estavam todos a dormir quando a Berta, de 14 anos,
decidiu sair para dar uma volta. De repente, ouviu um leve gemido. Aproximou-se cautelosamente
de uma pequena trouxa de farrapos colocada no meio da erva mais alta; depois, deparou-se com
aquele pequeno rosto banhado em lágrimas e, sem pensar duas vezes, tomou-o nos braços e correu
para casa. «Mãe, mãe, olha o que eu encontrei!»
Em poucos instantes todos acordaram: três mães e três pais e quase 50 meninas correram
para junto da nova irmãzinha, que apresentava sinais de desnutrição. Começou então uma
barulhenta competição para encontrar um nome. Assim como uma alegre «concorrência» sobre
qual das três famílias devia ficar com ela. Entretanto, as meninas mais velhas já estavam a aquecer
o leite.
Alguns dias mais tarde, a polícia encontrou os pais que, num gesto de desespero, tinham
abandonado a bebé, porque não conseguiam encontrar que lhe dar de comer. O pai contou ter
assistido a toda a cena, escondido entre as árvores ali perto, para ter a certeza de que não lhe
aconteceria nada de mal até ser encontrada.
A promessa de Duncan
Lucy tinha talvez nove anos quando a encontrámos na rua, juntamente com o irmão Duncan,
que tinha 16. Estávamos no início de 2003, e em Kivuli não havia lugar para ele. Contudo,
conseguimos integrá-lo num programa de recuperação para rapazes de rua que o Governo tinha
recentemente iniciado. Por uma feliz coincidência — devido à sua boa vontade e ao facto de ter
sido admitido num dos poucos centros estatais que funcionam bem — Duncan está agora a
frequentar o último ano de um curso para eletricistas.
Teve alguns dias de férias e veio encontrar-se com a irmã.
Aproveita a ocasião para me tomar à parte e me dizer solenemente: «Logo que acabe o curso
e comece a trabalhar, prometo-te que o meu primeiro ordenado será para as minhas irmãzinhas da
Casa de Anita e para os meus irmãos de Kivuli.» Esta promessa (não solicitada) talvez permaneça
uma promessa não cumprida, mas o simples facto de ter pensado nisso e de mo ter dito ilumina de
alegria o rosto de Duncan. A vontade de fazer o bem é o sinal mais evidente de que estes rapazes
encontraram equilíbrio e força para prosseguir em frente.
A menina que queria morrer
Caminhar juntamente com estes jovens e juntamente com eles renovar a nossa vida. É difícil,
mas isso não nos detém: os dias são cheios, todas as noites olhamos para trás, com satisfação, para
o troço de caminho feito, e com otimismo para aquele que ainda nos resta fazer. Não faltam
momentos em que nos sentimos cansados e sós. Em que todo o peso do mal do mundo parece
vencer-nos, esmagar-nos.
Então, vem-nos à mente que por cada Berta, cada Wanjuku, cada Duncan, há dezenas,
centenas que não conseguiram singrar. A favor dos quais não houve possibilidade de intervir, ou
sequer de estender a mão. É a longa, interminável, pesadíssima estatística dos insucessos. Os
nomes e os rostos daqueles que não têm esperança de sair dos bairros-de-lata….
Como Esther, que na semana passada veio para a minúscula casa que preparámos como
centro de primeiro acolhimento para crianças de rua. Dezassete anos, não recorda mais nada senão
a vida de rua. Gostaria de abandoná-la, fazer de lavadeira, vender farturas ao longo da estrada,
qualquer coisa. Tentou, mas sem êxito, porque não sabe fazer contas, é enganada, roubam-lhe o
dinheiro e batem-lhe. «Não consigo fazer nada, só tenho de esperar que Deus me leve, e me
castigue.» «Mas, Esther, quem te disse que Deus te castigará? Nós estamos aqui para te ajudar. Vá,
continua a tentar!»
♦♦♦
Não há coisa que faça sentir tanto o peso do mal como encontrar uma pessoa jovem tão
humilhada, desesperada, que deixou de sonhar. Não podemos aceitar que os jovens cresçam sem
esperança, sem grandes ideais e grandes sonhos. É esta a maior acusação que podemos — e
devemos — dirigir contra este nosso mundo. Isto é o Mal. Pior, muito pior, que a morte de Sara,
que na semana passada foi levada por uma leucemia com apenas 16 anos. Ninguém pôde fazer
nada. Mas contra as injustiças podemos fazer alguma coisa. Certamente muito mais.
Um banco de corações
Na vida de quem vive com os jovens há muitas gratificações momentâneas, como aquela que
me deu o Duncan. São momentos de consolação, é como retomar fôlego, e isso torna suportável o
nosso caminho sempre que o percurso se torna mais escarpado e pedregoso. A recordação e a
esperança de voltar a senti-los, sustentam-nos. Mas, quanto ao resto, o caminho é longo e difícil. E
é bonito — e é justo que o seja.
Aproxima-se a Berta. Fez um desenho. A folha está cheia de corações, todos unidos uns aos
outros, sem espaços vazios, de cores quentes: amarelo intenso, rosa, laranja e vermelho. Num
canto em baixo está escrito World Bank, Banco Mundial. A mensagem é clara, mas quero que seja
ela a explicar-ma e pergunto-lhe o que significa. «Mas não compreendes? No outro dia falaste-nos
do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e da dívida externa do Quénia. No meu banco
mundial, em vez de ouro e dinheiro, encontram-se todos os corações do mundo!»
♦♦♦
Estes jovens estão a crescer capazes de partilhar. É precisamente isso que queremos:
partilhar as coisas e as ideias, as emoções e os ideais. Que sejam capazes de aproximar-se de todos,
de encontrar-se com os outros numa relação em que cada um cresce porque arrisca e se
compromete. Que vivam plenamente e que sejam disponíveis para dar nova vida, superando a
esterilidade da autocomiseração e do egoísmo.
Renato Kizito Sesana