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CLUBE DA HISTORIA EM No tempo em que os animais falavam

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Lembro-me de ter ficado muito surpreendida quando li, um dia, uma história que começava assim “ No tempo em que os animais falavam”. Os animais sempre me responderam quando eu lhes falava, e eu conversava mais facilmente com a minha gata do que com a minha melhor amiga. E, duas vezes por ano, esta gata trazia ao mundo quatro ou cinco gatinhos.

— Tu já estás tão magra — dizia-lhe eu, quando ela me procurava para me mostrar os filhotes — e, agora, olha para ti… tens mais uma família para sustentar.

— Sei muito bem — respondia-me ela, miando. — Mas é tão bom ser mãe! Tu não consegues entender. Quando eu sinto os meus pequeninos com a barriguinha cheia de leite e bem aconchegadinhos a mim, é como se o sol brilhasse cá dentro.

E virava-os para me mostrar as listas dos seus corpos muito finas e regulares.

— Não são mesmo lindos? — continuava, lambendo- lhes o focinho.

— São mesmo um amorzinho de gatos, tenho de concordar. Mas como vou encontrar leite para te dar? Sabes que a nossa cabra morreu e que o meu pai faz das tripas coração desde que a minha mãe adoeceu.

— Não te preocupes, eu trato de tudo. Encontrei mais alguns ninhos de rato no celeiro. E rãs e sapos sempre se apanham!

— O quê? Serias capaz de comer um sapo?

— Oh! Ainda não cheguei a esse ponto — disse a gata quando me viu horrorizada.

— De qualquer maneira, é mesmo melhor que os escondas, se não queres que o meu pai os afogue.

— Ele anda sempre a dizer isso, mas quem teria coragem de afogar estes gatinhos tão lindos?

E deu-lhes mais umas lambedelas para que ficassem ainda mais bonitos e que nunca ninguém tivesse coragem para os afogar.

— De resto, vou entregar-tos — acrescentou. — E não vai acontecer-lhes nada enquanto tu estiveres por perto. Eu vou procurar caça para os lados do celeiro.

 

Mas, pobre de mim! Quando o meu pai descobriu os gatinhos, zangou-se mesmo a sério:

— O quê? A Finória quer rebentar para criar mais estes filhotes? Ela já está tão magra que até a pele se solta dos ossos e nós não temos mais leite para lhe dar. Parece que só pensa em trazer mais gatos ao mundo!

E então, sem se incomodar com as minhas lágrimas, envolveu a ninhada num lenço vermelho, juntou as quatro pontas num nó e desapareceu.

Pousei os braços no assento de uma cadeira para chorar, ao mesmo tempo que tapava os ouvidos. Pareceu-me ouvir miados aflitivos, saindo do lenço e vindos da estrada que o meu pai seguiu. Quando voltou, estava mais calmo. Mas também estava com a mesma cara do dia em que perdemos a nossa cabra. Eu continuava a chorar e reparei que ele se virou para esconder a tristeza. Sem pensar, tirou o lenço do bolso. Levou-o ao rosto, mas logo o afastou com horror e saiu.

— Meu Deus! O que vou responder à Finória quando ela me perguntar pelos filhotes? O que vou dizer-lhe?

 

Já não tinha tempo para pensar. A minha gata já estava na cozinha com a cauda direita e vibrante, o pelo molhado e colado ao corpo. Veio direita a mim com os seus olhos amarelos ainda arregalados pelo pavor. Já sabia de tudo! Não valia a pena mentir-lhe. Eu estava tão embaraçada que não conseguia articular uma única palavra.

Aliás, Finória também parecia ter perdido a fala. Roçou-se nas minhas pernas, dirigiu-se para a porta e olhou para mim com os olhos suplicantes. Por várias vezes repetiu estes gestos e compreendi que estava a pedir-me que a acompanhasse. Saltei nos meus tamancos e lá a fui seguindo pelo jardim. Ela tomava a dianteira com a cauda esticada até mais não.

E, a cada miado, parecia dizer-me:

— Depressa, depressa!

 

Rapidamente se pôs a dez, vinte, trinta metros à frente. De vez em quando voltava-se, esforçando-se para esperar por mim; mas louca de impaciência, não conseguia ficar quieta e continuava. Ela já estava junto à linha ribeirinha dos salgueiros, no fim do prado, e ia ainda no meio do campo dos trevos. Quando entrei no prado, ela começou a correr. Corri atrás dela; e ela chegou à margem do rio e desapareceu.

Cheguei finalmente à beira rio. Finória já tinha pulado para uma ilhota formada por plantas aquáticas e galhos mortos entrelaçados, onde os gatinhos se tinham agarrado depois de rodopiarem na torrente. Com as patas submersas, ela tentava em vão tirá-los da situação crítica em que se encontram.

— Apressa-te — miava — eles ainda estão vivos!

 

Eu nem parei para pensar. Tirei os tamancos e entrei na água, arriscando-me a molhar a saia. Libertei os gatinhos do emaranhado de ramos onde estavam presos e levei-os, cheios de lama, para a margem. Finória aproximou-se, lambeu-os, preocupada em limpar-lhes as narinas, enquanto eu os esfregava com ervas secas para aquecerem.

— Como foi possível atirar à água estes gatinhos inocentes!

— Então, Finória, acalma-te. Conheces bem o meu pai. É muito nervoso. Teve muitos problemas ultimamente. Se o tivesses visto quando voltou, até ias ficar com pena dele.

— Sim, mas foi uma sorte eu ter ouvido os meus pequeninos e tê-lo seguido até aqui!

— Tenho a certeza de que ele já está arrependido. Mas o que é que se pode fazer agora?

Decidimos então que eu traria os gatinhos no meu avental, e que os esconderíamos no palheiro onde mais ninguém entrara depois da morte da nossa cabra.

 

E foi assim que, nas três semanas seguintes, subi várias vezes por dia a escada do celeiro para tagarelar com a minha gata. Até consegui arranjar algum leite que me deu um vizinho a quem ajudei com as compras.

— Quando penso — dizia-me a gata — que por pouco não fiquei sem os meus bichanos! Olha bem para eles e diz-me se alguma vez viste gatos mais bonitos!

E era verdade. Eles eram um encanto! Trepavam-lhe para as costas, divertiam-se com os movimentos do rabo dela, mordiscavam-lhe as orelhas e contavam-lhe toda a espécie de coisas que uma mãe gosta de ouvir.

Enquanto os acariciava, eu tentava convencer Finória de umas ideias que andava a amadurecer há já algum tempo. Mas ela tinha-se tornado tão desconfiada que foi necessário mais do que uma semana para a persuadir a aceitar.

 

O meu pai tinha conseguido pagar a conta do médico e andava mais bem-disposto, mas entristeceu-se quando viu que a gata andava a evitá-lo. Finória já não aparecia, como antes, para dormir confiante sobre os seus joelhos enquanto ele fumava o seu cachimbo. Percebeu que a gata ia menos vezes lá a casa e que estava magoada.

— Meu Deus! Ela está sempre tão magra — dizia-me ele — não sei o que me passou pela cabeça para lhe afogar os gatinhos!

 

Chegou finalmente o domingo escolhido por Finória.

Um belo domingo cheio de pássaros e de sol.

Acordei pela manhã muito agitada e logo pedi tanto à minha mãe que me deixasse fazer umas bolachas, o que acabou por aceitar.

— Que disparate te deu! — exclamou ela.

— Sim, sim, já vais ver! — dizia-lhe eu — Vou preparar-vos uma festa, para ti e para o papá.

— Não é altura para festas! — repetiu a minha mãe.

— Sim, sim, deixa isso comigo.

— Tudo bem, vamos lá deixá-la preparar a festa! — concluiu o meu pai.

 

Provavelmente nunca mais me sairiam bolachas tão bonitas como nessa manhã de domingo. Da parte da tarde, pus sozinha a mesa para o lanche. Eu continuava eufórica: cantava, ria, dançava. Intrigados com tanta excitação, os meus pais entreolhavam-se de vez em quando como que à procura de respostas.

— E agora, depressa, sentem-se à mesa.

À hora combinada, no momento em que o sino tocou a rebate, Finória entrou na cozinha seguida pelos seus quatro gatinhos que brincavam à sua volta.

O meu pai empalideceu como se tivesse visto um fantasma.

— São mesmo eles! — murmurou — Três listados e um preto com uma mancha branca. Como é possível?!

 

Finória já estava com o mais bonito pendurado na boca. Dirigiu-se para o meu pai, saltou-lhe para cima e colocou-lhe o bebé sobre os joelhos para lhe mostrar que tinha perdoado. O meu pai pôs-se a chorar. A minha mãe levantou-se para o reconfortar, mas não conseguiu. Estava muito emocionada e desatou também a chorar. Eu própria, ao vê-los assim, acabei também por chorar. E sou capaz de jurar que vi duas lágrimas grossas nos olhos da minha gata.

Quando fomos comer as bolachas, o café já estava frio.

Tive de contar a história e, enquanto comíamos, não conseguíamos parar de brincar com os gatinhos que tinham visto a morte tão de perto! Pusemos os quatro em cima da mesa sozinhos. Finória, razoável como qualquer boa mãe, mas um pouco inquieta ao ver-nos tão entusiasmados, miava baixinho.

— Atenção, não os magoem!

 

Portanto, se um dia lerem uma história que comece pelas palavras “No tempo em que os animais falavam”, acreditem que essa história é mesmo verdadeira.

 
 
Maurice Carême
« Du temps où les bêtes parlaient » in Du temps où les bêtes parlaient
Belgique, Éd. Wellprint, © Fondation Maurice Carême
(Tradução e adaptação)