Pular para o conteúdo

Blog do Vavá da Luz

CLUBE DA HISTÓRIA EM : Sélavi – É a vida *

Sélavi – É a vida *
As crianças anseiam por ser capazes e por mostrar o quanto podem cuidar umas das outras. Este livro
ajuda-as a pensar e a encontrar modos de o fazer, mesmo enquanto crianças.
Sobretudo enquanto crianças.
Molly Bang

* (O idioma principal no Haiti é o Crioulo Haitiano, que tem raízes na língua francesa e em línguas da África
Ocidental. As palavras pronunciam-se foneticamente, exatamente como são escritas. Sélavi significa É a vida.)


Não há muito tempo e não muito longe, pessoas armadas podiam levar uma família,
queimar uma casa e desaparecer, deixando uma criança sozinha no mundo. Esta criança viajava de
norte e sul, de este a oeste. Aqui e ali, encontrava algo para comer e algum lugar onde dormir,
mas não uma família ou uma casa.
Na capital deste país, as ruas estavam congestionadas por autocarros cheios de gente, carros
com vidros escurecidos, e indivíduos armados. Havia pessoas
irritadas que gritavam “Mexe–te!” ou “Vai para casa!”.
A criança estava demasiado cansada para poder continuar.
Sentou-se na calçada, apoiando a cabeça com as mãos.
Subitamente, uma mão pousou sobre o seu ombro.
Seria um homem com uma arma? Não, era um menino da sua
idade, que lhe disse:
– O meu nome é Tifrè. Come esta banana. Qual é o teu
nome? De onde és?
A criança comeu sofregamente, mas não respondeu.
– Podes dar-te um nome – disse Tifrè. – O meu nome significa Pequeno Irmão. Podíamos
chamar-te Esfomeado, Sonolento, ou Pequeno Viajante…
– Eu sou todas essas coisas… – disse a criança – E é a vida.
Daí em diante, chamaram-lhe Sélavi.
Tifré levou Sélavi até ao sítio onde vivia, debaixo de uma árvore chamada figueira-debengala, próxima da praça do mercado, que ficava vazia ao fim do dia. Assim que o sol começou a
pôr-se, as crianças chegavam aos poucos a casa, trazendo algo para partilhar.
Enquanto fazia tranças no cabelo de Toussaint, Jenti disse:
– Tenho abacates para toda a gente. Deram-mos por ter trabalhado no restaurante.
Toussaint anunciou:
– Manga para um e para todos. Estive no cais, hoje.
Yvette e Espri apresentaram-se.
– Bebam água – ofereceu Yvette.
Espri sorriu para Sélavi.
– E este é o Mirror – disse Tifrè, apontando para uma criança que desmontava um rádio
estragado, enquanto colocava, numa mesa improvisada, banana frita enrolada em papel pardo. E
acrescentou:
– Cada um traz o que consegue recolher durante o dia, e acabamos todos por ter mais.
Naquela noite tinham o suficiente para se alimentar, um lugar onde dormir e o conforto de
cada um. Enquanto se preparavam para dormir, Sélavi contou-lhes
sobre os homens armados e sobre a sua caminhada pelos campos.
Depois, também os outros contaram as suas histórias.
Jenti: A minha família deixou a nossa aldeia e viajou num velho
ferry-boat. Voltei atrás para ir buscar uma última coisa mas, quando
regressei, o barco tinha-se desintegrado. Perdi toda a minha família.
Tinha oito anos.
Toussaint: Eu tinha nove anos e na nossa casa havia três irmãos, duas irmãs, quatro primos,
um avô, um tio, duas tias, a minha mãe e o meu pai. Era como se houvesse apenas um feijão seco
para todos nós. Por isso, disse-lhes “Isto é mais do que uma casa pode albergar”. Por vezes, volto
lá e certifico-me que todos estão bem.
Espri e Yvette: Estávamos a dormir, quando os nossos pais nos acordaram e disseram para
nos escondermos. Escondemo-nos juntos, num tambor de óleo vazio. Ouvimos muitos gritos e
depois fez-se silêncio. Quando saímos, não havia ninguém. Uma família levou-nos para
trabalharmos com eles, mas não cuidaram de nós.
Tifrè: A minha mãe levou-nos para uma cidade onde não conhecíamos ninguém. Como não
conseguiu encontrar uma casa, fez ela uma com coisas que encontrou. Ficou muito doente e
morreu. Pouco depois, o meu irmão também morreu. Eu estava demasiado triste para conseguir
chorar.
Na manhã seguinte, e nas outras manhãs, as crianças levantaram-se cedo para procurar
trabalho. Lavaram carros, transportaram água, lavaram roupa, pediram dinheiro e comida, e
procuraram metais e sucata útil que as pessoas deitavam fora.
Mas, um dia, um homem vestido com um uniforme empurrou duramente Sélavi.
– Vocês, crianças de rua, são uns ladrões indecentes! – disse o homem.
Sélavi teve medo. Correu para a casa das crianças, debaixo da figueira-de-bengala.
Mas lá havia mais homens irritados.
Um deles disse:
– Expulsámos os teus amigos. Se te virmos novamente, prendemos-te.
Sélavi desceu uma ruela e entrou numa igreja. Viu, aí, muitas famílias. Algumas pareciam
simpáticas, mas outras franziam o rosto por terem sido interrompidas.
Um senhor falava às pessoas.
– Sozinhos – disse ele – somos uma pequena gota de água, mas juntos podemos ser um
forte rio. Temos de ajudar cada um a tornar-se forte!”.
– Preciso de ajuda. – disse alto Sélavi. Alguns rostos viraram-se para ele. Sélavi falou-lhes dos
seus amigos e dos homens que o ameaçaram.
Uma senhora idosa disse:
– Aqui estás a salvo.
– Vem viver connosco e torna-te nosso filho – disse um casal que se levantou.
– Muito obrigado! – disse Sélavi. – Mas, o que irá acontecer aos meus irmãos e irmãs que
vivem na rua?
As pessoas conversaram umas com as outras.
– Podemos ser um rio… – decidiram eles.
Concordaram em construir uma casa onde as crianças de rua, que cuidavam umas das
outras, pudessem viver.
Seria um lugar onde todas pudessem dormir em segurança, comer bem, e talvez até onde
pudessem ir à escola. Seria uma casa para o Sélavi e a sua família.
E os apelos multiplicaram-se: alguns trouxeram comida e canções, outros trouxeram
materiais de construção. Quando ficou pronta, todos continuaram o trabalho em conjunto,
preparando refeições, lavando roupa, ensinando, e aprendendo.
No fim da tarde, jogavam futebol, contavam histórias e ouviam rádio.
A família cresceu. É este o final? Não.
Apesar de terem uma casa, ainda tinham problemas. O trabalho era difícil de arranjar e a
comida, por vezes, era pouca. Sélavi e a sua família sabiam que havia outras crianças que
precisavam de ajuda. Como poderia o rio chegar a mais pessoas?
Pintaram murais para que as pessoas ficassem a saber que todos eles precisavam de ajuda.
Um deles dizia: Se há crianças a dormir nas ruas, o que estamos a fazer por elas?
Mas alguém pintou por cima dos murais, e pior: algumas pessoas não fizeram nada e outras
deitaram fogo à casa de Sélavi e da sua nova família.
É este o final? Não!
As crianças estavam outra vez sem casa. Sim, tudo aquilo para que trabalharam com tanto
esforço tinha sido destruído.
Alguém queria secar o rio…
Mas isso nunca podia acontecer.
Ainda nos temos uns aos outros! Vamos reconstruir a nossa casa! E ainda temos as nossas
vozes! Vamos criar uma estação de rádio!
Todos sabiam como contribuir. A casa foi reconstruída.
Alguns encontraram fios e equipamento abandonado para restaurar, gravadores de cassetes
e cassetes. Outros procuraram um pequeno emissor. Aqueles que sabiam ler e escrever
escreveram histórias e reportagens. Alguns fizeram canções que contavam as suas experiências. E
outros construíram uma torre de transmissão para fazer ouvir as suas vozes em todo o país.
– Vamos escrever as mensagens no ar. Lá, não podem voltar a pintar por cima.
Até hoje continuam a ser ouvidos! Continuam a lutar, mas sabem que são parte de um rio
cada vez mais forte. E, agora, também tu fazes parte dele…

Todas as crianças precisam de um amigo que possa olhar por elas.
Ronald Joseph, antigo residente na Lafanmi Sélavi
.
Esta história é mesmo verdadeira?
Sélavi é baseado nas experiências das crianças de rua do Haiti. Sélavi, Tifré, os seus amigos e família
são pessoas reais. Juntos e com a ajuda de muitas pessoas construíram uma casa, chamada Lafanmi Sélavi,
em Port-au-Prince, a capital do Haiti. O nome da casa significa duas coisas: a família é a vida e a família de
Sélavi. Apesar de o abrigo original já não estar em uso, foi construída outra casa, um pouco mais longe do
centro. As crianças também criaram uma estação de rádio chamada Radyo Timoun, o que significa rádio
das crianças. Que ainda hoje continua a transmitir.
Através de histórias, canções e entrevistas, a Radyo Timoun luta pelos direitos das crianças, O seu
público tornou-se mundial e os programas são gravados e tocados por todo o lado. Ouvi falar da rádio das
crianças haitianas quando estava a viver na Califórnia. Disse aos meus amigos que queria fazer um livro que
pudesse ajudar a divulgar esta história nos Estados Unidos e em todo o mundo.
Os meus amigos juntaram-se para conseguir dinheiro para eu poder visitar e entrevistar os pequenos
ativistas da Radyo Timoun. Conheci as crianças que te dei a conhecer nestas páginas – tantas crianças a
trabalharam juntas e com adultos, para tornar a vida de todos melhor. Perguntei-lhes que mensagem
tinham para as pessoas do meu país e eles disseram-me: “Diz-lhes que estamos aqui, que não somos menos
que as crianças ricas, e que deve haver lugar para todos à mesa.”
A família do Sélavi é constituída por todos aqueles que vivem com esperança e que agem para se
ajudarem uns aos outros. Continua a crescer e a transformar-se, e a transformar a sociedade. O livro que
agora tu seguras nas tuas mãos existe por tudo o que partilhamos. Estou grata por esta oportunidade para
poder agradecer a generosidade dos amigos, as lutas e a coragem das crianças do Haiti, e a dedicação dos
adultos que se preocupam com elas. Todas as crianças merecem ser ouvidas. A família do Sélavi é uma
família extensa, com um forte sentido de comunidade. Tal como em todas as famílias, há muitas tarefas,
incluindo lavar a roupa, preparar a comida e lavar a louça. O trabalho custa sempre menos quando é
partilhado. Partilhar tarefas é também uma forma de brincar e de conversar.
Como todas as crianças em qualquer lugar, as crianças da família do Sélavi aprenderam sobre os
valores da vida e da sociedade, trabalhando, brincando e conversando em conjunto. Na casa também se
ensina e todos os residentes aprendem a tornar-se parte da transformação do Haiti num lugar cada vez
melhor.
Nos programas de chamadas telefónicas, uma criança telefona para colocar uma questão à pessoa
que está no ar. A Radyo Timoun é ouvida nas nove províncias do Haiti. Todos os dias. Na estação, crianças
dos seis aos dezoito anos dirigem e produzem os programas, centrando-se em temas como a segurança, a
saúde e os problemas sociais enfrentados pelas crianças todos os dias. A estação faz a atualização noticiosa
a cada hora e tem programas de educação sobre várias disciplinas, como ciência, História e gramática. Os
correspondentes reportam acontecimentos por todo o país. A estação também passa música e histórias, o
que permite a cada criança contar a sua história. Assim, a rádio é um meio importante para educar as
crianças sobre os seus direitos, ajudando-as a ser ativas e responsáveis nas decisões das suas vidas e da
comunidade.
Tout Timoun Se Moun.
Todas as crianças são pessoas.
Youme Landowne
Sélavi – that is life
El Paso, Cinco Puntos Press, 2004
(Tradução e adaptaç