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CLUBE DA HISTORIA EM : A revolta dos caixotes do lixo

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Ou como os bengaleiros, os caixotes do lixo e outros recipientes de detritos começaram a amar-se; eles que achavam que nada valiam, que eram feios e malcheirosos.

 

  

Na sala de espera de um médico, havia um bengaleiro de plástico preto, orgulhoso e nobre. Ora, este bengaleiro gostava do que fazia, visto que acolher os pobres guarda-chuvas molhados e evitar que encharcassem o chão era um trabalho a sério. Mas tinha um problema: estava colocado ao fundo da sala, e todos pensavam tratar-se de um balde de lixo.

Um balde do lixo parece-se com um bengaleiro, exceto no tamanho: os bengaleiros têm uma forma mais alongada e detestam parecer baldes. Quem gosta de ser confundido com um recipiente de lixo?

O nosso bengaleiro recebia, assim, no seu ventre, papéis com gordura, embalagens pegajosas de gelado, caroços de maçã, bocados de borracha velha roídos por alunos esfomeados, desenhos estragados, receitas médicas fora de prazo, palavrinhas meigas amachucadas por pessoas tímidas, velhas historietas…. E isto sem falar das beatas deixadas por pessoas mal-educadas…

Os caixotes do lixo, esses, aceitam tudo isso, curvando as costas e baixando os olhos.

Por isso, o bengaleiro andava bem desgostoso! Quando deitavam o lixo pela abertura, o bengaleiro tremia e sentia um pequeno sobressalto interior. “Ai!” dizia para com os seus botões. “É horrível”, pensava ele. “Pensam sempre que sou um caixote de lixo. Mas é a vida…” E lá engolia. Sem nada deixar transparecer, porque não tinha muito jeito para a revolta.

De tanto receber cascas de maçã, papéis amachucados com palavrinhas doces e papel de alumínio dos chocolates e bombons, o bengaleiro ganhou barriga e perdeu a cintinha de vespa. A tal ponto que o tomavam habitualmente por um gordo recipiente do lixo.

 

Foi então que, num dia de novembro, um senhor inglês chegou com o guarda-chuva cheiinho de água.

― É incrível! ― disse ele, com pronúncia inglesa. ― Aqui não há bengaleiros! E, no entanto, é uma sala de espera. Estes portugueses só têm caixotes do lixo e não têm bengaleiros. Não sabem viver. É um país onde não chove!

Talvez porque o senhor fosse inglês, e os ingleses se zanguem pouco, o bengaleiro, nesse dia, sentiu como que uma ferida no coração. No seu íntimo, em silêncio, gritou “Não sou um caixote de lixo! Sou um bengaleiro!” E o sobressalto interior foi tão violento que uma casca de banana saiu pela abertura. Também vomitou uma carta de amor, um velho papel de ovo Kinder e uma velha historieta. E pensou “Ninguém me ouviu, mas faz bem dizer o que nos vai na alma.”

Ninguém ouviu, e, no entanto, alguma coisa mudou.

 

No dia seguinte, estranhamente, alguém teve dúvidas outra vez. Uma jovem morena, que chegou com o guarda-chuva de golfe molhado, questionou-se:

 ― É esquisito, não sei se este caixote do lixo é um bengaleiro. Seja como for, é um recipiente de lixo fora do comum.

O bengaleiro pensou que era a sua vontade de afirmação que fazia com que se parecesse mais consigo próprio. Então, foi ainda mais longe. Disse:

― Eu sou eu e não um caixote do lixo!

E de tanto gritar, ou talvez porque estava com a voz mais treinada, o bengaleiro retomou uma forma mais esguia, mais elegante, com uma abertura no alto, desenhada precisamente para acolher guarda-chuvas.

― Não-sou-um-caixote-de-lixo! ― gritou na linguagem dos guarda-chuvas.

A partir desse dia, nunca mais ninguém se enganou.

 

― Põe o lenço de papel no teu bolso ― dizia a mãe ao filho. ― Não vês que não é um caixote do lixo? É um bengaleiro, tenho a certeza.

Às vezes, os pequenitos desobedeciam e, quando a mãe estava de costas, atiravam o lenço para dentro, pondo a língua de fora.

Por essa altura, muitos bengaleiros também se revoltaram, e muitos caixotes de lixo começaram a emagrecer, a emagrecer, e recusavam-se a receber porcarias.

Foram organizadas manifestações silenciosas:

― Rejeitamos os lixos, só aceitamos as bengalas e os guarda-chuvas!

Houve conferências em que os porta-vozes dos bengaleiros gritavam:

― Recusem a vossa condição! Não se nasce caixote do lixo, fica-se caixote do lixo! Pode-se sempre escolher! Sim, vocês têm valor…

 

Nesta altura, houve um excesso de protestos de bengaleiros e de caixotes do lixo, o que provocou um engarrafamento dos detritos. Mas foi depois desse dia que alguns senhores importantes começaram a refletir seriamente sobre a reciclagem dos lixos. O que fazer com os papéis gordurosos e bocados velhos de borracha, pauzinhos do chupa-chupa e latas vazias de coca-cola?

Os contentores de lixo especializaram-se com orgulho: uns acolhendo jornais, outros garrafas… Chamou-se a isso “triagem seletiva”. Com as novas cores, com as novas funções, sentiram-se tão importantes como os bengaleiros. E até pediram para mudar de nome!

Um dos caixotes propôs o nome de “cesto de acolhimento especializado”, um outro sugeriu “pousada para objetos em fim de vida”.

 

Por seu lado, os lixos ficaram muito contentes por ter havido alguém que pensasse em reciclá-los. Isso valorizava-os. É importante ter valor! Dá vontade de viver e de ser feliz.

Desde esse dia, toda a gente anda contente: bengaleiros, caixotes e lixo.

E já ninguém pensa em protestar!

Pelo menos nas salas de espera….

 

Sophie Carquain

Petites leçons de vie. Pour l’aider à s’affirmer

Paris, Ed. Albin Michel, 2008

(Tradução e adaptação)