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CLUBE DA HISTORIA EM : Obrigado Professor Falker

 O avô segurou no frasco de mel para que toda a família pudesse ver, e, depois, mergulhou uma colher lá dentro e deixou cair o mel na capa de um pequeno livro. A menina tinha feito cinco anos há pouco. — Levanta-te, pequenina! — disse ele meigamente. — Fiz isto para a tua mãe, os teus tios, o teu irmão mais velho, e agora para ti! Depois, estendeu-lhe o livro. — Prova! Ela mergulhou o dedo no mel e meteu-o na boca. — A que sabe? — perguntou a avó. A menina respondeu: — A doce! Depois, toda a família disse a uma só voz: — Sim, assim como o conhecimento! Mas o conhecimento é como a abelha que fez esse mel tão doce, tens de procurá-lo através das páginas de um livro! A menina tinha de prometer: em breve iria aprender a ler. risha, a menina mais nova da família, cresceu a amar os livros. A sua mãe, professora, lialhe todas as noites.

O irmão, de cabelo ruivo, trazia os seus livros da escola e partilhava-os. E quando ela visitava a quinta da família, a avó ou o avô liam para ela junto à lareira de pedra. Quando fez cinco anos e foi para o jardim-escola, o que ela mais queria era saber ler. Trisha via todos os dias os miúdos do primeiro ano a lerem pelos corredores, e ainda mesmo antes de o ano terminar, algumas das crianças da sua classe de começaram a ler. Mas não Trisha. Ainda assim, ela gostava de estar na escola porque podia desenhar. E os outros miúdos apinhavam-se à volta dela: havia magia nos seus lápis de cor. — No primeiro ano vais aprender a ler!— disse-lhe o irmão. No primeiro ano, Trisha sentou-se em círculo com as outras crianças. Tinham na mão o primeiro livro de leitura, e pronunciavam em voz alta sons e palavras. E a professora sorria quando eles conseguiam juntar os sons e formar corretamente uma palavra. Mas quando Trisha olhava para a T página, tudo o que conseguia ver eram formas a serpentear, e quando tentava reproduzir os sons em voz alta, os outros miúdos riam-se dela. — Trisha, para que sítio do livro é que estás a olhar? — perguntavam. — Estou a ler! — respondia ela. Mas a professora passava à pessoa seguinte. Sempre que era a vez de Trisha, a professora tinha que ajudá-la em todas as palavras.

E quando os outros meninos passaram para o manual do segundo e terceiro nível, Trisha ficou sozinha com o do primeiro. E começou a sentir-se “diferente.” Começou a sentir-se estúpida. Quanto mais difíceis as palavras eram, mais e mais tempo ela passava a desenhar — e como ela adorava desenhar! — ou ficava apenas sentada a sonhar. Ou ainda, quando podia, ia passear com a avó. Num dia de verão, ela e a avó estavam a dar um passeio pelo pequeno bosque atrás da quinta. Era a hora do crepúsculo. O ar era doce e cálido. Pirilampos erguiam-se na relva. Enquanto caminhavam, Trisha perguntou: — Avó, achas que eu sou… diferente? — Claro! — respondeu a avó. — Ser diferente é o milagre da vida. Vês todos aqueles pequenos pirilampos? Cada um deles é diferente do outro. — Achas que sou esperta? — Trisha sentia que não o era. A avó abraçou-a. — Tu és a coisinha mais esperta, mais rápida e mais querida que alguma vez existiu! Nesse momento a menina sentiu-se segura nos braços da avó. Ler não importava assim tanto. A avó de Trisha costumava dizer que as estrelas eram buracos no céu. Eram as luzes do céu que vinham do outro lado.

E dizia também que, um dia, ela estaria do outro lado, de onde vêm as luzes. Uma ocasião, ao entardecer, deitaram-se ambas na relva a contar as estrelas no céu. — Sabes, — disse a avó — todos nós vamos para ali um dia. Imagina: agarra-te à relva, tenta levantar voo…e vais ver que já lá estás! Riram-se ambas, e ambas se agarraram à relva. Mas não foi muito tempo depois dessa noite que a avó se libertou da relva e foi para onde as luzes estavam, do outro lado. E pouco tempo depois, o avô de Trisha libertou-se também… A escola estava a ser cada vez mais difícil. Ler era simplesmente uma tortura. Quando Sue Ellyn lia a sua página, ou Tommy Bob lia a dele, faziam-no tão facilmente que Trisha punha-se a olhar para o cocuruto das cabeças a ver se acontecia algo nelas que não acontecia na sua. E os números eram o mais difícil de tudo. Nunca somava corretamente o que quer que fosse! — Alinha à direita os números antes de somar — dizia a professora.

Mas quando Trisha tentava, os números pareciam uma pilha bamboleante de blocos prestes a cair. Numa só coisa acreditava: era estúpida. Então, um dia, a mãe disse-lhe que tinha arranjado trabalho como professora na Califórnia, a uma longa distância da quinta da família. Ainda que a avó e o avô tivessem partido, Trisha não queria ir embora. Mas talvez os professores e as crianças da nova escola não soubessem que ela era estúpida… E assim, ela, a mãe e o irmão lá foram, atravessando o país num carro velho de 1949 pintado a duas cores… A viagem demorou cinco dias. Mas na nova escola tudo era igual! Sempre que tentava ler, Trisha tropeçava nas palavras: “O ga, ga… gato …mmm, mmm … mia.” Na terceira classe e ainda lia como um bebé! E quando o professor lia juntamente com eles e pedia a Trisha que respondesse, ela dava sempre a resposta errada. — Ei, pateta! — chamou um rapaz no recreio. — Como é possível seres tão burra? Os outros miúdos juntavam-se a ele e todos riam. Trisha sentia as lágrimas a arder-lhe nos olhos. Como ela desejava voltar para a quinta dos avós no Michigan! E assim, cada vez queria menos ir para a escola.

“Estou com dores de garganta,” dizia à mãe. Ou “Estou com dores de barriga.” Sonhava cada vez mais e desenhava cada vez mais. E odiava, odiava, odiava a escola. Quando Trisha chegou ao quinto ano, a escola continuava a ser para ela uma enorme confusão. Mas, nesse ano, havia um professor novo. Era alto e elegante. Toda a gente adorava o seu casaco às riscas e as calças cinzentas bem engomadas, sempre impecáveis. E todos os alunos se colocaram logo à volta dele — Stevie Joe e Alice Marie, Davy e Michael Lee. Mas, desde o início, tal facto não pareceu ter a mínima importância para o Prof. Falker: parecia ignorar completamente os miúdos que eram mais giros, ou mais espertos, ou até os melhores, fosse no que fosse… E ficava de pé atrás de Trisha sempre que ela estava a desenhar, sussurrando-lhe: — Isso é maravilhoso… absolutamente maravilhoso. Tens ideia de como és talentosa? Quando ele dizia isto, mesmo aqueles colegas que a aborreciam viravam-se para ver os seus desenhos. Mas ainda riam sempre que ela respondia errado. Então, um dia, Trisha teve que se levantar e ler, coisa que ela detestava.

E, mal começou a ler, todos começaram a rir…. O Prof. Falker, no seu casaco de xadrez e laço ao pescoço, disse: — Parem com isso! Acaso se acham todos perfeitos? Não conseguem olhar para outra pessoa sem lhe encontrar defeitos? E aquele foi o último dia em que alguém se riu dela em voz alta. Ou fez troça. À exceção de Eric, que há dois anos se sentava na cadeira atrás de Trisha. Quase parecia que a odiava…e Trisha não sabia porquê. Esperava-a à porta da sala de aulas e puxavalhe o cabelo, esperava por ela no recreio, encostava a sua cara à dela e chamava-lhe nomes… E Trisha tinha até medo de virar uma esquina, não fosse Eric estar ali mesmo. Estava perdida e sentia-se completamente só! A única altura em que ela se sentia realmente feliz era quando estava perto do Prof. Falker: ele deixava-a apagar o quadro — só os melhores alunos tinham o privilégio de o fazer —, dava-lhe uma palmadinha nas costas sempre que ela fazia alguma coisa bem, e punha um olhar duro e zangado se algum colega a atormentava. Mas quanto mais simpático o Prof. Falker era com Trisha, pior Eric a tratava. E até conseguia que todos os outros colegas esperassem por ela no recreio, ou na cafetaria, ou até nas casas de banho, e de repente lhe aparecessem chamando-a de “Estúpida!” ou “Feiosa!” E Trisha continuou a acreditar neles.

Mas descobriu que, se pedisse para ir à casa de banho antes do intervalo, conseguia esconderse debaixo das escadas durante todo o tempo de recreio, não tendo assim que ir lá para fora. E agora só naquele lugar escuro é que ela se sentia completamente segura. Mas, um dia, durante o intervalo, Eric seguiu-a até ao seu esconderijo secreto. — Transformaste-te numa toupeira? — perguntou, sorrindo maldosamente. E puxou-a para o átrio, dançando em redor dela. “Pateta, pateta, grande pateta!” Trisha enterrou a cabeça nos braços e enroscou-se toda, como uma bola. De repente, ouviu passos. Era o Prof. Falker. O professor levou Eric até ao seu gabinete. Quando voltou, encontrou-se com Trisha. — Acho que não vais ter que te preocupar mais com aquele rapaz! — disse com calma. Trisha pensava que o Prof. Falker acreditava que ela sabia ler. Até tinha aprendido de cor o que o colega a seguir a ela estava a ler… Ou então esperava que o Prof. Falker a ajudasse com a frase, e depois repetia o que ele tinha dito. — Muito bem! — dizia ele. Então, um dia, o Prof. Falker pediu-lhe para ficar um pouco depois da escola para o ajudar a limpar os quadros. Pôs música e começaram a comer pequenas sanduíches enquanto trabalhavam e conversavam. De repente, disse: — Vamos fazer um jogo! Vou dizer bem alto as letras, e tu e vais escrevê-las no quadro com a esponja molhada, o mais rápido que conseguires. — A — gritou ele. E Trisha desenhou um A aguado. — Oito — gritou ele. E ela fez um 8 aguado. — Catorze … Três… D… M… Q — continuou ele. E gritou muitas e muitas letras e números.

Depois, pôs-se atrás dela, e juntos olharam para o quadro. Havia nele uma confusão aguada. Trisha sabia que nenhuma das letras ou números tinham o aspeto que deviam ter. Por isso, atirou a esponja ao chão e quis fugir dali. Mas o Prof. Falker segurou-a por um braço e ajoelhou-se em frente a ela. — Julgas que és burra, não é? — perguntou. — Como deve ser horrível viver tão sozinha e assustada! Trisha soluçou. E o professor continuou: — Não percebes o que se passa? Tu não vês as letras e os números da forma como os outros as veem. E, apesar disso, conseguiste fazer a escolaridade até agora, sem que nenhum professor tivesse reparado nisso! E sorriu-lhe. — Para isso foram precisas uma grande dose de inteligência e muita, muita coragem! Depois, o Prof. Falker levantou-se e acabou de limpar o quadro. — Vamos mudar tudo isso! Vais saber ler, prometo-te! Depois disso, quase todos os dias depois das aulas, Trisha encontrava-se com o Prof. Falker e a Prof.ª Plessy, uma professora especializada em leitura. E juntos faziam tantas coisas! A maior parte ela nem sequer percebia! Ao princípio, fazia círculos na areia, e, depois, grandes círculos com a esponja no quadro, da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Depois, projetaram letras num ecrã, e Trisha dizia-as em voz alta. Noutros dias ela trabalhava com blocos de madeira e construía palavras. Letras, letras, e mais letras. Palavras, palavras, e mais palavras. Sempre a dizê-las alto e bom som. Que bem sabia! Mas, embora tivesse lido palavras, Trisha nunca tinha lido uma frase completa. E, bem lá no fundo, ela ainda se sentia burra. Foi então que, num dia de primavera — tinha sido há três ou há quatro meses que tinham começado? — o Prof. Falker pôs um livro à frente de Trisha.

Um livro que ela nunca tinha visto. E escolheu um parágrafo no meio de uma página, apontando para ele. Quase que por magia, ou como se a luz tivesse inundado o seu cérebro, as palavras e as frases começaram a ganhar forma na página como nunca antes tinha acontecido! “Ela … encaminhou … – os … até …” Devagar, Trisha leu uma frase. Depois outra, e outra. E finalmente conseguiu ler um parágrafo. E compreendeu tudo! Nem reparou que o Prof. Falker e a Prof.ª Plessy tinham lágrimas nos olhos. Naquela noite, Trisha correu para casa sem parar sequer para respirar. Galgou as escadas da frente, escancarou a porta, e correu desde a sala de jantar até à cozinha. Trepou pelo armário da louça acima e pegou num frasco de mel. Depois, foi para a sala de estar e descobriu o livro numa prateleira, o mesmo livro que o avô lhe tinha mostrado há já tantos anos atrás… Derramou uma colher de mel na capa e saboreou a doçura… E disse para consigo “O mel é doce, assim como o conhecimento, mas o conhecimento é como a abelha que fez o mel, tem de ser procurado através das páginas de um livro!” Depois, segurou no livro, no mel e em tudo o resto, bem junto ao peito. Sentia as lágrimas a correrem-lhe pela cara abaixo. Mas já não eram lágrimas de tristeza. Agora, sentia-se tão, tão feliz…. O resto do ano foi uma odisseia de descobertas e aventuras para a menina.

Trisha aprendeu a gostar da escola. Sei que assim foi… porque a menina era eu, Patricia Polacco. Reencontrei o Prof. Falker cerca de trinta anos mais tarde. Fui ter com ele e apresentei-me. A princípio, teve dificuldade em identificar-me. Depois, disse-lhe quem era, e como, muitos anos atrás, ele tinha mudado a minha vida para sempre… O Prof. Falker abraçou-me e perguntou-me o que fazia. — Porquê, Prof. Falker? — perguntei. — Escrevo livros para crianças. Obrigada, muito obrigada! v v v Vencedora de vários prémios, autora e ilustradora de mais de 50 livros para crianças, PATRICIA POLACCO era ainda pequena quando lhe foi diagnosticada uma dislexia. Não conseguia ler. Mas mesmo depois de ter aprendido a ler, ela nunca quis estar numa turma especial. Queria ser uma menina normal, numa turma normal. Hoje em dia, quando Patricia não está na sua casa em Union City, no Michigan, anda a viajar pelos Estados Unidos. Visita escolas e livrarias, dá palestras e inspira os jovens leitores e ouvintes de todos os lugares com os seus discursos entusiastas e comovedores.

 

Patricia Polacco Thank you, Mr. Falker New York, Philomel Books, 1998 (Tradução e adaptação)