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CLUBE DA HISTORIA EM : O Viajante

clubeQuando Eva entrou na Arca, apenas da estrela da tarde restava um pouco de
luz.
Havia muito já que os largos horizontes da planície se tinham diluído e uma
noite imensa parecia anunciar o final dos tempos. Um cheiro sufocante e húmido
inundava todo o espaço, enquanto, lentamente, o caminho se fazia, num rio sem
margens que o assinalassem. Seres escuros, de rostos invisíveis, embrulhados nos
xailes de merino ou grossos capotes, dormitavam, as cabeças oscilando, uma das
mãos segurando a asa das cestas donde emergia o pescoço dos patos e perus que,
daí a horas, seriam sacrificados no altar das tradições natalícias.
Eva sentou-se ao lado do timoneiro que tentava vislumbrar o rumo para lá
dos grossos cordões de chuva ou, um só que fosse, dos antiquíssimos sinais que há
anos lhe serviam de bússola e estrela do norte: o perfil do monte da barra azul, o
moinho sem velas, a oliveira com uma cruz pintada a cal onde Justa se enforcara,
a velha ponte romana, a capelinha, se nesta viagem houvesse dados, referências e
aquela chuva diluviana não ocultasse tudo num manto de desolação.
Pelo espelho lateral, Eva tentava descobrir o rosto dos viajantes, mas só as
cabeças das aves saindo das cestas vermelhas se agitavam em gritos intervalados.
De repente, um chiar de travões sacudiu a Arca e, na claridade difusa dos faróis,
recortado de encontro ao vidro, surgiu o rosto.
Tinha uns olhos imensos, tristes, o cabelo e a barba compridos, brilhantes da
água que o enquadrava numa moldura líquida. Ergueu as duas mãos como se
quisesse segurar a luz, impedir que a Arca o esmagasse ou esperar que se
detivesse para ele entrar. Entre impropérios, pragas à vida, ao tempo, à profissão
que escolhera, o timoneiro não parou. Pelo contrário, acelerou.
Por fragmentos de segundos, o Homem pareceu ter oscilado. Levantou os
braços como quem tenta proteger-se, depois, diluiu-se em noite e ausência, não
sem que antes, o seu olhar, que tinha a fosforescência dos eleitos ou dos animais livres e puros, iluminasse mais uma vez o negrume que cobria o mundo.
— Não viu o Homem? — sussurrou Eva.
— Vi muito bem. Parecia um fantasma vindo sabe Deus donde e para quê.
— Não vai parar e recolhê-lo?
— Aqui não é lugar de paragens. Muita sorte a dele em não ter sido
atropelado. Só um doido é que anda por aí, numa noite destas, num caminho
assim, sem princípio nem cais de desembarque.
Eva tentou imaginá-lo atravessando sozinho as ondas daquele novo dilúvio
que desabara na terra e parecia já ter apagado a lembrança das coisas, a
respiração viva das horas mais antigas e os sonhos. Todos os sonhos. Talvez esta
Arca encontre um dia, de novo, o alto dos montes e tudo se refaça como no
princípio. Talvez amanhã ou daqui a muito tempo – o que é o Tempo? – o timoneiro
abra uma nesga de vidraça e solte, não a pomba dos mitos mas um pato que
regressará, grasnando, para confirmar que são longe as oliveiras e perdidas para
sempre as cores do arco-íris.
E, nesse dia, só o olhar do Homem permanecerá, colado à memória de quem o
encontrou, no espaço visível e mínimo que os faróis em trânsito consentiram.
Ficará ali, para sempre, implorante e acusador, como uma pintura antiga, como o
vestígio de um fóssil onde se assinalará para as gerações vindouras o remorso e o
amor não consentido.
Eva levantou a gola do seu capote alentejano. Sem desfitar o abismo
perguntou:
— Ainda chegaremos antes da meia-noite?
— E se não chegarmos que diferença faz? Acha que existe algum deus que
mande o filho nascer numa noite como esta, de lama, frio e miséria? Bem sei que
para lavar tanta imundície da terra, não existe água que baste mas, escusava de
ser logo hoje. Apesar de tudo, o Natal é um tempo desejado, a única altura em que
parece amansarem as feras que trazemos à solta dentro de nós. Esta lata que
conduzo já deixou de ser uma camioneta: é uma barca perdida, talvez a Arca de
Noé, e esses todos que aí estão atrás, a dormir, sonhando com grandes ceias,
prendas, vinho, esse todos, olhe-os bem: descontando os patos e os perus que
estão bem acordados adivinhando talvez o que os espera, o resto é gente que já
morreu há muito e não deu por isso.
Eva fecha os olhos.
Um pranto convulso inunda-lhe os pensamentos e o rosto do Homem cresce,
furtivo, na sua ternura.
Apetece-lhe sair daquele sarcófago ambulante, mergulhar na noite, caminhar no vazio, ir ao seu encontro onde quer que esteja: ou caído nas pedras, ou pregado
numa cruz, ou sendo açoitado no átrio dos templos, ou coroado de espinhos, ou
vestido com o manto escarlate e áspero da solidão.
De repente, soube que o viajante noturno veio de outras margens, outros
dilúvios, dos escombros das guerras, atravessando cinzas e risos, fugido dos
altares. A mão que se ergueu contra os faróis, Eva recorda-se agora, tinha uma
pequena cratera cercada de azul, da espessura de um prego.
Assim, enquanto a Arca navega na noite, por entre o ruído brando dos
pequenos imprecisos sinais com que figuramos os sonhos e os poemas, se foram
reconstituindo as sombras e o cheiro a húmus que brotava não se sabia bem
donde. Um nevoeiro espesso e repentino cresce do chão e oculta o resto do que já
era invisível, como se um enorme animal enfurecido tivesse começado de súbito a
respirar.
Eram onze horas da noite desse dia vinte e quatro de Dezembro quando a
Arca encalhou, finalmente, no largo da vila. De súbito, sem que se percebesse
porquê, deixou de chover, mas por muito tempo, as pedras guardaram ainda no
dorso de granito, reflexos puros.
As sombras mexeram-se. Reanimaram-se. Pegaram nos embrulhos, nos
imensos guarda-chuvas, nos cestos, nos sacos de plástico, na resignação.
Abraçaram outras sombras que os esperavam. Os patos, as galinhas, os perus
gritaram na noite: o deus das aves, implacável, avisara-as dos rituais de sangue
em que iam ser imolados. Protestavam. Inutilmente como acontece com todos os
inocentes.
Eva avista a Mãe.
O mundo refaz-se quando os seus olhos se cruzam com o seu olhar
angustiado e doce.
— Que susto, filha! Que noite de Natal mais estranha. Há cinco horas que
esperamos a camioneta. Já não sabíamos que pensar.
Caminhavam pela rua da infância.
Quando a porta da casa se abre, Eva sente o calor da lenha que crepita, olha
a mesa posta e que sabe de cor: são seis os pratos, seis os talheres, dezoito os
copos de pé alto, brilhantes sobre a toalha alva e engomada, com grandes flores em
matiz branco e rosa pálido, feita há cinquenta anos para o batizado da Mãe. Ao
centro, uma vela vermelha cresce dos ramos de azevinho, das flores e dos frutos. E
ainda duas garrafas cheias de vinho branco e tinto que ninguém beberá.
Nos pratos das cabeceiras da mesa que se destinam a Eva e à Mãe, duas
lembranças atadas com fita às riscas douradas e também um pequeno ramo de
pinheiro. Nos outros pratos, uma discreta flor sobre os guardanapos presos em argola de prata com nomes gravados: são os ausentes. Os que partiram para o
outro lado do Tempo.
Ali estão, em todos os Natais, em todos os aniversários e celebrações:
sentados, hirtos, solenes, a impedir que os esqueçam, que se solte uma gargalhada
feliz, um riso claro. Ali estão, a espreitar as prendas que Eva e a Mãe trocam ao
soar a meia-noite, com um beijo e uma frase: «Feliz Natal e que Deus os conduza
aos caminhos da Luz e nos guarde no Seu amor.» Ali estão, a gelar a sala, a
controlar as palavras, a exigir que os recordem, que falem dos seus hábitos, dos
gestos que lhes eram perfil.
Há anos que é assim. Por isso, chegar é quase igual a partir.
Sobre a tábua da chaminé, o pequeno presépio que já foi da bisavó da avó,
que também partiu. Mas ali está o seu nome, na argola de prata: Lucrécia.
— Vai mudar de roupa. Veste uma camisola mais quente. Vou buscar o
bacalhau, é quase meia-noite.
Eva dirige-se ao guarda-louça. Tira mais um prato, dois copos, talher, um
guardanapo e coloca-os na mesa. Do prato que está à cabeceira e lhe pertence,
retira a prenda e, em seu lugar, coloca uma bola azul brilhante que roubou da
árvore de Natal.
Sentam-se.
Eva dá a direita à Mãe.
— Mas aí não é o teu lugar. Sabes que gosto de conservar os hábitos.
— Aqui, a teu lado, em todos os dias de festa, vai ser o meu lugar de hoje em
diante. Fico mais perto de ti. O dia foi muito longo, já tinha muitas saudades tuas,
do cheiro da casa, deste calor manso que nasce onde estás.
— E ali, onde puseste a bola azul, na cadeira de honra, quem se senta?
— Um Homem que vi esta noite no meio do temporal e ninguém recolheu.
— Um Homem? Quem?
— Não sei. Mas vai ficar aqui, no lugar dos vivos, nesta casa e entre nós. Para
sempre.
Lá fora, o relógio velho da torre, atravessou com doze badaladas o ar frio e
quase transparente da noite que amansara e se enchera de estrelas.
Eva tinha quinze anos, nesse tempo.
Já perdeu a casa. A Mãe. A mesa onde os ausentes vigiavam. Às vezes, ela
própria já se vê ausente. Mas, sabe-se, ainda guarda a bola azul.
Maria Rosa Colaço
Viagem com Homem dentro
Leiria, Editorial Diferença, 1998