O rapaz que sabia acordar a primavera
no sonho, https://www.segredosdosonho.com.br a liberdade
Era um rapaz. Tinha nascido nos montes, entre fraguedos bravios, pinheiros e águas claras. A
sua casa de granito ficava à sombra de pedregulhos de rosto austero e de carão zangado, alguns
enormes e esmagantes, como se restos, ainda, do castelo do emir mouro, que raptava raparigas, na
noite do casamento, como diziam os contares das velhas de antigamente.
O pai e a mãe faziam contas à vida pobre, a vender e a comprar ovelhas, galinhas e ovos. Mas
ele sabia, nos seus seis anos espigados, que o dinheiro não comprava o sonho e continuava as suas
brincadeiras de pensar e fingir, à beira do riozinho, de caudal pedregoso e apertado, de corrente
cantante – a espraiar-se no poço dos paus e debaixo da ponte romana, entre os olmos.
Na margem, havia violetas selvagens e outras flores, pequeninas e delicadas, de que não sabia
o nome. Ali, era um dos seus poisos prediletos. Gostava de ver os alfaiates, de longas pernas, a
cerzir e a passajar as águas claras, quietas e pouco fundas, onde chapinava e caçava rãs, e que na sua
pouca fundura (mistério!) refletiam toda a altura dos olmos. Também gostava de sentir o silêncio,
que media pelo rastejar das lagartixas, e de espreitar o céu, com nuvens brancas pousadas no cimo
do monte, mas que, quando ele o subia e julgava aproximar-se delas, ficavam altas e inacessíveis,
no azul.
Às vezes, o pai ralhava.
― Ó aluado, só agora chegas?! Nem para pastor de ovelhas vais servir…. Só
se for para pastorear andorinhas! Ai, ai…
Sim, porque a sua maior paixão eram os pássaros.
Os seus pios, trilos, trri-chis-chis, canto, assobios, o cu-cu,
malandreco, do cuco, que dava às raparigas anos sem conta de solteiras,
quando lhe perguntavam:
― Cuco, cuco da ribeira, quantos anos me dás de
solteira?
Muito gostava de ter asas e poder voar! Isso
sim, seria ser livre.
Por isso sabia ninhos. E os seus amores eram o colorido da penugem do papo, das asas e do
leme do rabinho dos seus amigos. E com eles costumava fazer um ritual de iniciação, que oficiava.
Quando aquecia um pouco, como um brasume brando, e o inverno estava a chegar ao fim, punhase a espreitar o tojo, a urze, o recorte, frágil, dos biquinhos de rouxinol, de um arroxeado-rosa.
E sobretudo as primeiras pascoinhas brancas e o ouro das calcinhas de cuco, dos narcisos
selvagens, junto do rio, eram o sinal. Tinha chegado a hora.
Então, outro dia, de manhãzinha, descia pela encosta até ao deslado do rio, onde ficava um
campo relvado de verde, a confinar com os pinheiros e uma correnteza de oliveiras, que espetavam
na tarde as suas sombras colegiais no fundo do vale. E ali, sozinho, no meio do campo e da manhã
nascente, assobiava, assobiava, assobiava.
E, então, vindos de todos os lados,
os pássaros acorriam, com os seus trilos
e as suas asas: melros de biquinho
amarelo e as suas capinhas negras, de
estudantes, em férias, andorinhas, azulnoite e babeiros brancos de meninas bem-comportadas, a graça, cinza-clara, riscada de branco, das
lavandiscas, que se juntavam ao bailado dos melros.
Do pinhal, vinham poupas, piscos, os gaios com o precioso azul-esverdeado das suas asas,
bandos de pardais, rolas e pombas. Os pássaros faziam uma roda de asas sobre o campo verde. Só o
cuco ficava lá para os lados da Abelheira, mas misturava o seu cu-cu, malicioso e insistente, aos
trilos, pios e trri-chis-chis e arrulhos das rolas e das pombas.
Debaixo do céu azul e rodeado de asas, o rapaz acordava, com aquele ritual, a primavera, que
desabrochava em todo o seu esplendor. Bastava olhar. Nos montes era já a ressurreição. Flores de
sargaço, algumas com as cinco chagas de Cristo nas pétalas brancas e de olhinho dourado,
juntavam-se ao amarelo e roxo do pampilho e soajo.
As azinheiras estavam já enfeitadas com os seus brincos pingentes-de-filigrana, dourada, a
chover por entre as folhas. A madressilva e a sua florescência, rosa-branca, em coroa, começava a
cheirar. Nas carvalheiras os bugalhos acerejavam o seu cetim, fofo, e abiscoitavam-se, tostadinhos.
A arçã misturava a sua flor de paixão ao rosmaninho, prontos ambos a ser colhidos para
tapetes do senhor, nas igrejas da Páscoa. Na cinza, recortada das flores, os cardos floriam. No muro
da ponte, que dava para a estrada, a glicínia chovia, dadivosa, em cachos roxos e brancos, que
perfumavam o cansaço dos passantes, ajoujados pela lida do dia-a-dia.
E as borboletas, como flores inquietas e desassossegadas, com o seu branco, canela ou
castanho-fogo, finalmente caligrafado e japonês, espalhavam bênçãos aqui e ali, e também sobre o
beijinho da giesta, que concentrava o ouro da manhã…
Luísa Dacosta
O Rapaz que sabia acordar a Primavera
Porto, Asa Editora, 2007