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CLUBE DA HISTORIA EM : O Natal na Rua Lawrence

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Vou honrar o Natal no meu coração, 

e tentar mantê-lo durante todo o ano.

Charles Dickens
 
 

A nossa família mudou no dia em que fomos até à Rua Lawrence.

E não foi num dia qualquer. Foi no dia de Natal.

Convictos que os nossos três rapazes, criados nos subúrbios, não iriam crescer ingénuos e estragados com mimos, decidimos servir-lhes um pedaço de vida real antes de saborear o resto da nossa festa.

Em vez da corrida matinal escada abaixo até à opulenta árvore, vestimo-nos, carregámos o carro e iniciámos o percurso de quarenta e cinco minutos até à baixa da cidade, até à missão de ajuda. Poderia a visão dos sem-abrigo mitigar a habitual disputa por presentes em excesso? Será que o olhar sobre uma vida diferente (por alguns instantes que fosse…) nos iria fazer apreciar mais a nossa própria vida?

Os rostos desapontados dos meus rapazes diziam-me o contrário.

 

Eu sempre fui uma “fã” das missões de ajuda, sendo “fã” a palavra exata. Tal como um espetador que nunca pisa o campo, eu sentia-me realmente bem, sentada nas bancadas, batendo palmas e incentivando-os. Que boa organização! Excelente missão! Força, equipa, força! Mas algures, ao longo do trajeto da minha vida, eu deixara de me sentir satisfeita por dar vivas a partir das bancadas. Queria ir para o terreno, fazer a minha parte, fazer a diferença.

Ver os meus jovens filhos a terem de lutar contra o materialismo tinha provavelmente algo a ver com aquilo. Vivemos numa das comunidades mais opulentas do Colorado, onde o parque de estacionamento da escola secundária mais parece um stand de vendas de carros novos e as semanadas rivalizavam com o valor do meu salário. Tentar contrariar a atração do hedonismo era uma prova para todos nós…

Quer vendo programas de televisão conspurcados por anúncios comerciais de coisas que tens que ter, quer saindo com amigos que se gabavam constantemente de uma infindável coleção de brinquedos e engenhocas, o luxo e a ganância bombardeavam os meus filhos. Dia após dia. “Eu quero o que ele tem!”; “Porque é que eu não posso fazer o que ele faz?”

Até eu sentia aquela pressão contínua. O materialismo parecia estar a arrastar-nos para um declive escorregadio. Se eu queria que a nossa família tivesse um coração aberto ao mundo para além deles próprios e dos bens materiais, precisava de fazer algo de drástico para contrariar aquela cultura. Não podia ficar à espera que a compaixão e o altruísmo florescessem, sem plantar primeiro umas sementinhas de generosidade.

 

Daí a nossa viagem até à Rua Lawrence na manhã de Natal.

Depois de terem recuperado do seu desapontamento inicial, os meus rapazes rapidamente retomaram, no banco de trás do carro, a sua habitual conversa das manhãs de Natal. Não estavam felizes com aquele desvio, mas tentaram tirar disso o melhor partido. Sentei-me no lugar da frente, a pensar no meu pijama e nos enroladinhos quentes de canela à minha espera em casa, e sentindo falta do lento desenrolar do nosso Natal habitual. Surpreendi-me por tão facilmente ter desviado o pensamento para o meu próprio conforto: será que desistir de uma simples manhã de lazer é um sacrifício assim tão grande? Estaria eu a ser devorada por pensamentos egoístas?

As minhas dúvidas ficaram por responder no momento em que entrámos na Rua Lawrence, pois nada poderia ter preparado a nossa família para o que ali vimos.

Em frente a fachadas de lojas velhas, arrastando-se por baixo de uma placa brilhante que proclamava “Jesus Salva!”, mais de uma centena de sem-abrigo aglomeravam-se, casacos esfarrapados e sapatos gastos. Esfomeados. Esquecidos. Com frio. No Dia de Natal. E enquanto eu passava por aquela multidão de almas desalojadas, de repente ocorreu-me: embora o Dia de Natal seja o culminar do nosso ano, para os sem-abrigo o dia 25 de dezembro é pura e simplesmente mais um dia de agonia, em que é preciso encher um estômago vazio e aquecer um corpo gelado.

Com esta revelação a martelar-me nos ouvidos, a cacofonia das vozes dos rapazes no banco de trás foi-se tornando cada vez mais num mero suspiro, acabando mesmo em silêncio.

Alguns homens de aspeto mal cuidado aproximaram-se do nosso carro, provavelmente à espera que tivéssemos comida ou um cobertor a mais. O meu marido olhou-me com um ponto de interrogação nos olhos. “Pronta?”

Muda, acenei que sim uma vez, e depois abri a porta. A poucos centímetros de distância um homem inclinava-se sobre a parede de tijolo do edifício da missão, com as suas roupas gastas, umas por cima das outras, e sujas. Resmungava qualquer coisa sem sentido, alheio à nossa presença. Outro homem empurrava um carrinho de mão a desfazer-se, cheio com os seus tesouros, muito provavelmente o lixo de alguém. Dei uma espreitadela lá para trás, no carro, e vi as caras dos meus filhos esborrachadas contra os vidros das janelas, parecendo mais homens que crianças à medida que interiorizavam a cena.

O meu marido tocou à campainha do edifício da missão enquanto eu abria a parte de trás do nosso carro. Ansiosos por ajudar, os meus filhos passaram-me sacos e prendas, enquanto eu os ia colocando no passeio. Rapidamente, dois voluntários da missão chegaram para ajudar a descarregar. Sacos com roupa, casacos de inverno, brinquedos, assim como uma dúzia de perus congelados, incluindo tudo o que era necessário para um grande jantar de Natal. Nem de perto o suficiente para fazer face às necessidades da multidão que rodeava o nosso carro.

Senti-me mal: a nossa oferta era pequena demais.

Depois de tirarmos do carro tudo – menos a nós próprios – desejámos o nosso mais caloroso “Feliz Natal” com o mais largo sorriso. Mas, tal como os presentes demasiado pequenos, até aquela generosidade parecia oca. A nossa noção de “Feliz Natal” diferia largamente da versão da Rua Lawrence. Afinal de contas, dentro de uma hora ou duas estaríamos sentadinhos dentro de casa e à volta do pinheiro, abrindo prendas e empanturrando-nos com comida suficiente para duas famílias. As caras que tínhamos visto na Rua Lawrence estariam ainda à procura de um abrigo.

 

Voltei a subir para o banco da frente e espreitei por cima do ombro. Vi rapazes sossegados, com olhos sombrios, caras sérias que provavelmente espelhavam a minha. Não era preciso dizer nada. A visão do que se passara na Rua Lawrence deixara as suas marcas, atingindo o coração de cada um de nós.

Sim, a nossa família mudou nesse dia.

E, desde então, todos os dias 25 de dezembro, continuamos com a tradição iniciada nesse ano. Enquanto as nossas prendas ficam em casa por desembrulhar e intocadas, nós vamos para a Rua Lawrence para lembrar aqueles que são esquecidos demasiadas vezes, e para entregar prendas àqueles que precisam delas muito mais do que nós. É um pequeno esforço. Apercebemo-nos disso agora. Mas é também um esforço que já todos esperamos que faça parte da nossa celebração de Natal, e que talvez nos mude – mais a nós do que a eles.

E mudou-nos, efetivamente, de outras formas também. A nossa árvore já não é tão glamorosa como dantes. O nosso desejo de ter mais e mais não é tão forte como era anteriormente. Houve vezes em que deixámos o conforto da nossa casa para levar amor aos mais pobres em África ou no Haiti, durante uma semana ou duas, em vez de uma só manhã.

No entanto, ainda há momentos em que os meus filhos prefeririam dormir na manhã de Natal. E, às vezes, eu penso em fechar os olhos aos necessitados e ficar em casa a comer os rolinhos quentes de canela ainda de pijama.

 

Mas, depois, as caras que vi na Rua Lawrence trespassam-me de novo o coração. E eu compreendo mais uma vez que o Natal é mais – viver é mais! – que uma árvore esplendorosa e um estômago cheio. Porque a minha grande gratificação não a encontrei em comida ou bens, mas na dádiva de mais um dia comum passado a dar amor a alguém.

 

Michele Cushatt