Fala comigo — diz o tio Willie quando me vem buscar à escola. E eu desço as escadas como se saísse de uma casa a arder. — Corrida até à esquina! — grito eu sem parar. O tio Willie finge oscilar nas suas pernas de feijão-verde. E faz-me rir tanto que chega à esquina antes de mim. Enquanto a minha mãe está no emprego, a ocupação do tio Willie é tomar conta de mim. Isto é “fixe” para mim e também o é para ele. Mas, durante o dia e enquanto estou na escola, o tio Willie tem outro trabalho: ocupa-se da sopa dos pobres. — Hoje alimentámos muita gente —diz ele. — Esparguete e almôndegas. Foi bom, o camião da padaria parou para nos deixar pão extra. O tio Willie procura no seu bolso e espalha migalhas no passeio.
Também procuro no meu, e tiro de lá um telescópio de papel. — Porque trabalhas lá, afinal? — pergunto. — É importante — diz-me o tio Willie. — Às vezes, as pessoas precisam de ajuda. Ao subir o quarteirão, ouço a chiadeira do carrinho do homem das latas, cheio das latas vazias que ele encontra por toda a vizinhança. A minha mãe diz que as troca por dinheiro no supermercado. Sempre que o vejo, lá vai ele a empurrar um carrinho de compras. Mas, hoje, empurra o carrinho em direção a nós. — Vamos — sussurro para o meu tio. Mas penso que ele não me ouviu. — Como vai o negócio, Frank? — grita o tio Willie. — Mais um quarteirão e acabo por hoje — responde a gritar o homem das latas. O tio Willie pega numa lata vazia e atira-a para dentro do carro. — Dois pontos pelo cesto! — diz o homem das latas.
Depois, inclina-se de novo sobre o carrinho e dá-lhe um grande empurrão. — F E ouço o som daquelas rodas barulhentas, até que estão muito, muito longe… — Desde quando é que conheces este homem? — pergunto eu. — Desde que o Frank foi comer pela primeira vez à sopa dos pobres — responde o meu tio. — Mas porque é que o Frank não come na sua própria casa? — insisto. — Não tem um lugar para viver? O tio Willie pega na minha mão e balança-a para cima e para baixo. — Nunca perguntei ao Frank onde vivia — diz o tio Willie. — Na sopa dos pobres, só tem de se ter fome. Quando a minha mãe, na manhã seguinte, me leva à escola, vejo uma mulher a dormir num banco do parque. — Parece que está sozinha — digo. E sinto uma certa tristeza quando a vejo.
A minha mãe diz que hoje em dia há muitas pessoas solitárias. — É por isso que me sinto orgulhosa pelo teu tio. Está a fazer algo para as ajudar. — Como será trabalhar na sopa dos pobres? O tio Willie vai lá quase todos os dias e eu nunca fui nem sequer uma única vez com ele… A minha mãe entrega-me o dinheiro para o leite e apressa-me a subir os degraus da escola. — Porque não lhe pedes que te leve com ele na próxima segunda-feira? — diz ela. — Lembra-te que tens um dia de folga. udo pronto? — pergunta o tio Willie, numa radiosa manhã de segunda-feira. — Tudo pronto! — digo eu. Apalpo o meu bolso e tiro o telescópio. O tio Willie agarra no seu boné e enche os bolsos com pão. A minha mãe dá-me um beijo de despedida e diz-nos a ambos para nos mantermos longe de sarilhos.
A sopa dos pobres não é muito longe de onde vivo, mas parece que o caminho é longo. Passamos pela minha escola. Passamos o supermercado, a drogaria, a padaria, e a lavandaria. Quando chegamos ao mercado do Sr. Anthony, eu já estou a arrastar os pés. — Vamos parar e ver se hoje o Sr. Anthony tem alguma coisa para nós — diz o meu tio. A porta tem uma pequena campainha que toca sempre que ela se abre. — Bom dia! — grita o tio Willie. —T — Bom dia para si também! — responde o Sr. Anthony. — Tenho algo especial para si! Quando o Sr. Anthony sai dos fundos, entrega ao meu tio um grande saco castanho.
E também me entrega um saco castanho a mim. — Frango para a sopa — diz-nos o Sr. Anthony. — Comida para um festim! — exclama o tio Willie. A pequena campainha toca outra vez quando a porta se fecha. E eu aceno um adeus através da janela da frente. Depois de contornarmos a esquina, o meu tio aponta para um pequeno edifício de tijolo. Do lado de fora parece velho e decadente. — Chegamos — diz ele. Uma mulher abre uma grande porta branca. — Bom dia, Shanta! — diz o tio Willie. — Muito bom dia! — diz Shanta a sorrir. — Hoje trazes contigo um ajudante! Cumprimento Shanta e sigo o tio Willie. A sala é pequena e luminosa. As quatro grandes panelas de sopa a ferver em cima do fogão deixam todo o espaço a cheirar lindamente.
Há posters na parede que dizem: TENHA UM BOM DIA e POR FAVOR, NÃO FUMAR. — Olha, tio! — digo eu. — As mesas do refeitório são iguaizinhas às da minha escola. Mas o que é que está a fazer aquela cadeira alta ali? O meu tio pega no meu saco e pousa-o em cima da mesa. — Também vêm cá criancinhas. Vou apresentar-te a todos os que cá estão — diz o tio Willie. Primeiro conheci um gato. — Este é o Underfoot — diz o tio Willie. — O Underfoot trabalha no turno da noite lá em baixo na cave. E além está o Irmão Mike. O Irmão Mike abre os grandes sacos do armazém do Sr. Anthony e vira-os de cima para baixo. — Frangos — diz ele, olhando para nós. — Ótimo! Obrigado por terem ido buscá-los.
Um homem lava uma grande caçarola prateada numa banca dupla. — E este é o George — diz o meu tio. — Se não fosse pelo George, estaríamos todos em dificuldades. O tio Willie coloca um avental e ajuda-me também a pôr um. — Agora ao trabalho! Vejo o tio Willie a cortar o aipo em pedacinhos finos e a partir os tomates em quartos. Corta as batatas, a salsa e as cebolas aos bocados, e atira-as para dentro de cada panela de sopa. Sorri para mim enquanto agita uma cenoura. — Perfeito! — grita ele enquanto acaba com os feijões verdes. — Ajudas-me a separar as frutas e os legumes? — pergunta-me Shanta. — O mercado deu-nos tanta fruta que hoje podemos fazer uma salada. Eu separo a fruta e ponho-a na banca para lavar. Enquanto Shanta a parte em fatias, eu misturo-a dentro da grande caçarola prateada com uma colher de madeira.
Tudo aqui tem um tamanho extra grande… George sai de trás da banca e abre uma enorme lata de amendoins. Diz que toda a ajuda é bem-vinda. Em cada uma das mesas do refeitório ponho uma grande taça de amendoins, um grande prato de queijo fatiado, um grande prato de manteiga, e dois grandes cestos de pão. — Mmmmm, estou faminto — exclamo, quando o Irmão Mike dá mais uma mexida em cada panela. — Intervalo! — diz ele. — Serve-te de uma tigela de sopa. — Senta-te lá — diz-me o tio Willie. — E põe-te à vontade. Deito um pouco da minha sopa numa taça para o Underfoot. — Sopa de frango e legumes — digo. — A minha favorita! Olho em volta para todas as cadeiras vazias. — E se não houver sopa suficiente? — pergunto. O tio Willie gesticula com as mãos. — Parece mágico! — diz ele. — Há sempre mais um pouquinho! E tira algo do bolso. — Este pequeno comando vai dizer-nos quantas pessoas vêm cá hoje.
Assim poderemos fazer comida suficiente para amanhã. Quando acabo de comer a minha sopa, espreito lá para fora e vejo uma longa fila de gente desde a porta até à esquina. — Antes, eu estava naquelas filas — diz o George. — Mas agora estou aqui, a ajudar. Olho fixamente pela janela e depois procuro o tio Willie. — Aquelas pessoas são todas sem-abrigo? — sussurro eu. — O George também é um sem-abrigo? O tio Willie inclina-se um pouco sobre mim e diz: — O George tem um quarto arrendado num prédio aqui perto. Mas algumas daquelas pessoas não têm sequer um sítio onde viver. Se elas estão aqui é porque têm fome, e nós estamos aqui para as ajudar. O Irmão Mike enche as tigelas de sopa fumegante, e coloca uma em cada tabuleiro. Shanta distribui as taças de fruta e põe-nas perto das tigelas.
Quando estão prontos os primeiros tabuleiros com a sopa e a fruta, o tio Willie grita “Hora de almoço!” Nós abrimos a grande porta branca e as primeiras pessoas apressam-se a entrar. — A sopa está boa e acaba de sair da panela! — grita o tio Willie. Diz olá a toda a gente que entra. — Como estás, Duplo Jim? — pergunta o tio Willie. Duplo Jim aponta para a sua barriga e ri. — Eu tenho duas vezes mais fome e sou duas vezes maior! — diz. Há tanta gente a empurrar para entrar mais depressa que deixo de conseguir ver lá para dentro. Alguns dos sem-abrigo tentam cumprimentar-me, mas eu permaneço de pé, rigidamente encostado à porta. — Ele teve um dia de folga na escola — anuncia o tio Willie, conservando a mão dele no meu ombro. — Por isso, veio até aqui para ver onde eu trabalho. — Lá está o Frank, o homem das latas — murmuro. — Olá Frank! — diz o tio Willie, apontando para as caixas de frutas e legumes. — Sirvase à vontade. Hoje temos quantidade extra.
Em pouco tempo, a sopa dos pobres está cheia. Shanta enche as taças de fruta, uma atrás da outra, enquanto o Irmão Mike enche as tigelas. De repente, parece que toda a gente está a falar ao mesmo tempo. As pessoas vão ao balcão e dizem: — Esta sopa está muito boa. Posso comer outra? Ou — Deu mais galinha a ela do que a mim! — Mas eu estava na fila primeiro. — Nós precisamos de mais pão na nossa mesa, por favor. — Nós queremos mais manteiga na nossa. — Mais queijo na nossa, por favor! Eu observo os sem-abrigo a entrar e a sair — primeiro com fome, depois satisfeitos. — Anda cá para dentro agora — chama-me o meu tio. George anda de um lado para o outro. Pega nos pratos sujos do balcão e leva-os para a banca. E eu posso ouvir as colheres de sopa clink, clink, clink.
Uma mulher arrasta os pés e enche os bolsos de bananas. Parece-se muito com a que vi a dormir no banco do parque. E espero que assim seja. Espero que ela venha comer à sopa dos pobres. Aqui já não está tão sozinha. Antes que me aperceba, do lado de fora da porta a fila desaparece, assim como toda a fruta que estava dentro da caçarola prateada da Shanta. Alguns dos sem-abrigo ficam para ajudar a limpar tudo. Eu seguro a pá do lixo com firmeza enquanto o Duplo Jim varre uma pilha de migalhas para eu apanhar. Quando o tio Willie e eu estamos prontos para sair, cumprimentamos todos os que ajudaram. O Irmão Mike abre para nós a grande porta da frente. — Volta sempre, e em qualquer altura! — diz-me. — Precisamos bem de ajuda extra. — Obrigado uma vez mais pela sopa! — grito eu para todos os que estão mais afastados. — O Underfoot também gostou da sopa. No caminho de regresso a casa, o tio Willie mostra-me o contador. — Hoje demos de comer a cento e vinte e uma pessoas — diz ele. — São muitos cidadãos! Tiro o telescópio de papel do bolso e espreito pelo canto do olho o meu tio.
Todo ele é sorrisos… A rir, pega numa lata vazia e entrega-ma. Pego na lata e aponto para o lixo. Virome. E falho. Salto então. E disparo outra vez. — Ora diz-me lá… — diz o tio Willie. E apita como se eu tivesse encestado mais dois pontos. YYY
Acerca da Sopa dos Pobres
Todos os dias, em cidades de todo o mundo, voluntários e trabalhadores pagos preparam refeições para alimentar milhões de homens, mulheres e crianças com fome que vêm comer às sopas dos pobres locais. Organizações religiosas, armazéns da vizinhança, bancos alimentares, dinheiro de doações e subsídios governamentais apoiam estes esforços para prover refeições quentes aos mais pobres.
Neste país, uma em cada oito pessoas é pobre. Muitas delas são crianças. E não é preciso que os que vêm alimentar-se às sopas dos pobres estejam desempregados ou sejam sem-abrigo. Às vezes, algumas pessoas que trabalham não ganham dinheiro suficiente para prover às suas necessidades básicas. Muitas são as pessoas idosas que vivem dos seus pequenos salários fixos que dependem das sopas dos pobres para a sua refeição principal. E não só.
“Bread for the World”, “Results”, “Second Harvest”, “National Network of Food Banks”, e “Food Hunger Hotline” — eis apenas algumas das centenas e centenas de organizações que existem no nosso país para fazer face à crescente necessidade dos que são pobres e têm fome.
DyAnne DiSalvo-Ryan Uncle Willie and the soup kitchen New York, Mulberry Paperback Book, 1997 (Tradução e adaptação)