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Blog do Vavá da Luz

CLUBE DA HISTORIA EM : O dia em que a Vovó Gogo foi votar

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Vovó Gogo é muito velhinha. Quando lhe pergunto quantos anos tem, ela diz: — Sou mais velha do que esta cidade. Quando nasci, não havia carros nem aviões. Quando regresso a casa da escola, os meus pais ainda estão a trabalhar e, por isso, Vovó Gogo toma conta de mim. Chama-me a sua “caudinha”, porque a sigo para todo o lado. Deixa-me sempre levar o seu lindo saco de tecido azul, onde guarda todas as coisas importantes.

Às vezes, diz-me para o abrir e encontro doces! Quando os meus dentes da frente caíram, ela pô-los no saco. Na manhã seguinte, disse-me que os procurasse lá dentro. Os meus dentes tinham desaparecido e havia uma moeda… Peguei nela e comprei um par de brincos cor-de-rosa. Como nasceu há muito tempo, Vovó Gogo sabe muitas coisas e conta-me muitas histórias, que a sua Avó Gogo também lhe contava.

Por exemplo, conta-me como os nossos antepassados viviam antes da chegada dos brancos, fala-me do sítio de onde a nossa família veio, e diz-me quais as relações familiares que temos uns com os outros. Um dia, os meus pais chegaram a casa muito entusiasmados, porque os principais partidos políticos tinham acordado uma data para a eleição do novo governo. O meu pai explicou que o dia 26 de abril de 1994 seria o dia de votação para os mais velhos e para os que estavam muito doentes. Todas as outras pessoas votariam a 27 e 28 de abril. Esses dois dias seriam feriado e as pessoas não teriam de ir trabalhar. — Bem, eu irei votar com as outras pessoas mais velhas, a 26 de abril — anunciou Vovó Gogo. Todos ficámos espantados porque ela nunca saía de casa! Nem sequer para ir à igreja.

O padre até tinha de vir a nossa casa para rezar com ela… Daí a nossa grande surpresa quando Vovó Gogo disse que ia votar! — Não podemos levar-te a votar no dia 26 de abril, porque estaremos todos a trabalhar — disse o meu pai. — Então votarei convosco a 27 — disse Vovó Gogo. — E como é que vais até à secção de voto? — perguntou o meu pai. — Do mesmo modo que vocês vão — respondeu ela. — Mas nós vamos de autocarro. Não podemos levar-te num autocarro apinhado! Os autocarros devem andar demasiado cheios nesse dia, e podemos ter de ir a pé. — Além disso — acrescentou a minha mãe — haverá longas filas de pessoas na secção de voto. Não conseguirás ficar de pé na fila! Os meus pais pediram ajuda aos meus tios para tentar convencer Vovó Gogo de que não podia ir votar.

Mas ela recusou-se a ouvi-los. — Querem que eu morra sem ter votado? — perguntou. A nossa vizinha, Ma Mlambo, veio perguntar por que motivo toda a família estava reunida em nossa casa. Enquanto os meus pais falavam com ela, perguntei a Vovó Gogo porque queria tanto votar. Estava preocupada com o que lhe pudesse acontecer, como no tempo em que ela ia levantar a reforma. Vovó Gogo explicou-me: — Thembi, os negros na África do Sul lutaram durante muitos anos pelo direito ao voto. Esta é a primeira vez que temos uma oportunidade de votar pelos nossos próprios líderes, e poderá ser a última para mim. É por isso que tenho de votar! Não quero saber dos quilómetros e não me interessa o tempo que terei esperar na fila! Ma Mlambo contou tudo acerca da Vovó Gogo ao tio, o Sr. Ramushu, um homem rico, proprietário de muitas lojas na cidade. E ele enviou uma mensagem ao meu pai a dizer que iria mandar o seu próprio carro e o motorista para levar Vovó Gogo a votar.

Perguntei aos meus pais se podia ir com ela. Disseram que eu era muito pequena, mas ela disse-lhes logo que eu tinha de ir para ajudar a transportar o seu saco azul… E em breve chegou o dia das eleições. Na noite anterior, estávamos todos tão excitados que não conseguíamos dormir! No dia 27 de abril, de manhã cedo, vestimos as nossas melhores roupas. Estávamos ansiosamente à espera, quando o grande e polido carro do Sr. Ramushu parou em frente à nossa casa. Enquanto ajudávamos Vovó Gogo a entrar no carro, todos os nossos vizinhos vieram para a rua festejar. O motorista abriu-nos a porta do carro. Os meus amigos exclamaram “Olhem para a Thembi num Benz!”, mas eu fiz de conta que não os via.

Ia ajudar Vovó Gogo a votar e não tinha tempo para falar com eles. Havia muitas pessoas na fila para votar, e a multidão teve de se afastar para deixar o carro passar. O Sr. Ramushu tinha falado a todos os eleitores da Vovó Gogo, e todos estavam à espera dela. Como ela não podia ficar de pé na fila, uma mulher chamou o presidente da comissão de eleitores, que nos conduziu até à secção de voto. Vovó Gogo mostrou o seu bilhete de identidade aos delegados da mesa, que lhe colocaram as mãos por debaixo de uma máquina. Perguntei-lhes porque o faziam. — Trata-se de uma máquina de raios ultravioleta — explicou o presidente da comissão de eleitores. — Como é proibido votar duas vezes, esta máquina ajuda-nos a garantir que cada pessoa vota apenas uma. Se olhares para as mãos da tua Gogo através daquele vidro, não consegues ver nada.

Mas se colocarmos este líquido incolor nas mãos dela e as pusermos de novo sob a máquina, o que é que vês? — As mãos parecem azuis! Porque é que isto acontece? — perguntei. — Porque este líquido é tinta invisível. Só consegues vê-la sob a máquina. Não pode ser lavada e só desaparece ao fim de três dias. Nessa altura, as eleições já terão terminado. — Portanto, se Vovó Gogo tentar votar noutra secção de voto nos próximos três dias — concluí — as suas mãos irão mostrar-se azuladas ao passar sob a máquina e eles saberão que ela já votou! Depois, deram a Vovó Gogo um boletim de voto para levar até à cabine.

Apeteceu-me chorar quando me disseram que não podia entrar com ela. Mas Vovó Gogo abraçou-me e pediu: — Thembi, por favor, segura no meu saco enquanto voto. — Porque é que não posso ir com Gogo?— perguntei. — Porque ninguém deve saber em quem ela vota — disse o fiscal. — Mas eu já sei em quem ela vai votar! — repliquei. — Shhh! Isto é uma votação secreta! Significa que não podes dizer a ninguém! — disseram eles. A minha mãe pediu-me que parasse de fazer tantas perguntas.

Os delegados da mesa de voto riram-se e disseram que eu tinha de fazer perguntas para estar preparada para votar quando fizesse dezoito anos… Quando Vovó Gogo saiu da cabine de voto, colocou o boletim numa grande caixa com uma abertura na parte de cima. Parecia um mealheiro. Algumas pessoas com grandes máquinas fotográficas, daquelas com luzes brilhantes de flash, tiraram-lhe fotos. E até nos tiraram uma fotografia às duas! Vovó Gogo parecia cansada, mas sorria e apertava fortemente a minha mão. Todas as pessoas na sala se levantaram e bateram palmas durante bastante tempo. A minha mãe disse-me que eles aplaudiam Vovó Gogo porque, no nosso município, era ela a eleitora mais velha.

Os meus pais choraram e eu também chorei. Não sei bem porquê, talvez porque me sentisse muito feliz… Quando chegámos a casa no lindo carro do Sr. Ramushu, o nosso pátio estava repleto de vizinhos e familiares. Tia Sophie tinha cozinhado mgqusho, e Ma Mlambo trouxe um enorme balde de gemmer. Enquanto comíamos, alguns dos meus tios discutiam sobre quem iria vencer as eleições. Estavam bastante irritados, porque tinham votado em partidos diferentes. — Calem-se! — pediu o meu pai. — Não nos vamos aborrecer com isso agora. O importante é que agora podemos votar! Temos de aprender com o exemplo da Vovó Gogo! Toda a gente começou a cantar canções sobre a liberdade e a dançar. Dançaram tanto que ninguém se lembrou de me mandar para a cama.

Dancei o toyi-toyi com os meus primos mais velhos até os pés ficarem doridos. Quando estávamos já demasiado cansados para continuar, todos cantámos o nosso hino nacional, Nkosi sikelel’ iAfrika, e arrastámo-nos até à cama. No dia seguinte, havia uma fotografia nossa no jornal. Os meus primos leram em voz alta as palavras por cima da foto: “O passado e o futuro: a eleitora centenária Srª. M. Mokoena, acompanhada pela bisneta, Thembi, de seis anos de idade.” Sentimo-nos ambas muito orgulhosas e importantes! Após as eleições, todo o município festejou. Quando o Sr. Nelson Mandela se tornou presidente do país, as pessoas dançaram e cantaram nas ruas durante todo o dia e toda a noite. Houve muitas festas e todos nos sentíamos felizes. Mas, para mim, o dia mais belo foi o dia em que Vovó Gogo foi votar.

 

Eleanor Sisulu The day Gogo went to vote London: Little Brown, 1996 (Tradução e adaptação)