As aldeias existem e têm a profundidade dos lugares imaginários. Às vezes dizem-nos que não existem, que são coisas do passado – como se fosse coisa do passado desenhar uma lua com pés e um sol com braços. O que eu quero dizer é que as aldeias existirão sempre: escondidas no segredo dum caderno, pintadas com lápis de cor, algumas casas de um lado, algumas casas do outro e no meio uma fonte ou uma árvore.
Outra coisa que quero dizer é que nas aldeias as árvores crescem mais depressa que nos bosques, nas montanhas ou noutro lado qualquer, porque as pessoas as olham e elas olham as pessoas. As árvores das aldeias são mais altas porque sempre podemos subir por elas e sentir a fascinação e a vertigem de olhar para baixo. Quando alguém tem de sair da sua aldeia, não deve olhar para trás. Se o fizer leva em si apenas uma parte da sua aldeia. Se o não fizer leva-a inteira. E mesmo quando lhe parecer que já está muito distante, deve manter-se de costas, pois aquilo que há de mais terrível nas aldeias é que sempre perseguem aqueles que as habitam.
Era uma vez um menino chamado Bashu. Não se chamava João, José ou Miguel porque na sua terra os meninos não se chamavam João, José ou Miguel mas Bashu, Rashid ou Naii.
Um dia ouviu-se um som aflito e breve de vozes, como se o ar saído dos pulmões mal tivesse tempo de chegar à garganta. Bashu tinha ido à aldeia vizinha comprar sal e regressava quando as casas começaram a cair umas sobre as outras. Fugiu para o meio dos arrozais levando na mão o saco de sal que tinha ido comprar. Nunca olhou para trás, mas sabia que muitas pessoas o seguiam: umas, crianças como ele; outras, que já tinham reconstruído muitas vezes as suas casas; outras, mulheres com filhos ao colo ou na barriga.
Bashu sabia que ninguém da sua família o seguia porque quando as casas começaram a cair umas sobre as outras viu uma coisa que lhe pareceu ser um lagarto de fogo rastejando pelo meio das pedras amontoadas da sua casa. E sentiu que alguém lhe dizia:
–– Foge, Bashu!
Depois dos arrozais, entrou na floresta. Era uma floresta cada vez mais densa e difícil de atravessar. Quando chegou a noite, dormiu entre as folhas de árvore que havia pelo chão e com o saco de sal a fazer de travesseiro. Antes de adormecer ouviu sem nenhum medo as vozes espaçadas da noite. Submerso pelo sono, Bashu adormeceu e viu uma nuvem de borboletas amarelas que avançava na sua direção e preenchia todo o seu espaço visível. Em pouco tempo tudo era borboletas amarelas.
As árvores, o chão, a sua roupa e a sua pele eram borboletas amarelas. A lua e as estrelas tinham a cor amarela das borboletas. O mundo inteiro eram borboletas amarelas. Bashu deixou-se ficar paralisado e sem conseguir pensar em nada. Apenas olhava aquele mar de borboletas, bonito e triste. Estava imóvel e ouvia só um zumbido de asas. Não ouvia mais nada. Não via mais nada, não havia mais nada no mundo. Bashu estava no centro e as borboletas amarelas rodavam à sua volta. A floresta era toda ela um universo de borboletas amarelas. Da sua boca e dos seus olhos saíam borboletas amarelas que se juntavam às outras. Uma asma amarela formava um novelo no seu peito e quase não podia respirar. Uma mão de fogo, saída da terra, irrompeu no meio das borboletas e elas começaram a cair no chão. Transformavam-se em lagartas, cavavam orifícios e desapareciam.
Bashu despertou e ouviu o ruído de ramos a estalar. Levantou-se, pegou no saco de sal e recomeçou a caminhar. Atrás de si seguiam vozes de pessoas e o choro de crianças. À medida que passavam os dias e as noites, ouvia cada vez menos vozes e o choro das crianças era como o som de um bando de pombas que passa sobre a aldeia e se afasta, até ficar só nos ouvidos o bater impercetível das suas asas. Bashu já quase não conseguia caminhar. Havia um torpor que lhe prendia as pernas e uma baforada quente que lhe incendiava o peito. Sentou-se e, em pleno dia, adormeceu ao lado do saco de sal.
Quando acordou era noite e viu que alguém passara por ali, lhe levara um pouco de sal e lhe deixara uma posta de peixe seco e um pão. Comeu o peixe e o pão e das folhas das árvores conseguiu juntar algumas gotas de água para uma folha maior e bebeu. Próximo de si, por entre as árvores densas, havia pequenos focos de luz na escuridão. Eram animais que o olhavam. Sempre ouvira dizer que alguns eram ferozes, mas não se assustou.
–– Porque hão de os animais fazer-me mal? – pensou.
A única coisa que o assustava eram os estalidos metálicos que às vezes ouvia e a seguir vozes aflitas e silêncio. Nesses momentos, a floresta era uma só árvore enorme que abanava porque um bando de aves negras pousava na sua copa. E algumas folhas caíam.
Quando se caminha pela floresta durante tanto tempo, a partir de certa altura, não há muito para contar. Bashu não podia parar para brincar, observar ou imaginar coisas. O seu tempo era o tempo de abrir passagem por entre a vegetação, rastejar quando não era possível caminhar em pé, subir através dos troncos caídos para passar ao outro lado. Não tinha tempo de se perguntar para onde caminhava, pois não fazia a mais pequena ideia de onde estava e o que poderia encontrar quando acabasse a floresta. O seu tempo era o tempo de encontrar alguma coisa que pudesse comer, umas gotas de água que pudesse beber e esperar que alguém, durante o sono, lhe deixasse pão e um bocado de peixe seco. E quando a noite chegava, Bashu estava tão esgotado que logo adormecia. Fazia uma cama de folhas de árvore, deitava-se e adormecia, o saco de sal como travesseiro.
Numa das noites, os seus olhos já mais fechados do que abertos, fixaram-se na lua. Estava cheia, redonda, perfeita. Por uns segundos sentiu-se bem a olhá-la assim. Não havia mais nada na noite; apenas ele e a lua. Quando adormeceu, viu que a lua ia crescendo, crescendo e se aproximava de si, insegura e trémula como uma bola de sabão. Começou a ver ao perto todos os desenhos que há na lua e que sempre vira, indecifráveis, ao longe. Era a lua da sua aldeia. Era a mesma que, de tempos a tempos, desaparecia por uns dias e depois voltava e ia crescendo até ficar como a via agora e como na realidade é. Era a mesma lua que dava profundidade aos uivos dos animais, corpo à noite e desenhava a sombra dos que caminhavam na noite. Começou a ver claramente as suas montanhas de prata e as crateras onde podia jogar às escondidas com Rashid.
Pensava todas estas coisas quando Rashid surgiu imprevistamente de uma cratera com o seu sorriso de alquimista de sonhos e lhe saiu ao caminho para o assustar. Bashu não se assustou, porque nenhum medo ou susto podia quebrar o encantamento e a alegria de rever Rashid.
–– Não achas que o mundo seria melhor se não houvesse homens?
–– Não, Rashid, porque se não houvesse homens não havia mundo. Só havia coisas sem nome.
–– Não havia mal…
–– Nem bem, Rashid. Só havia coisas sem nome.
–– E para que precisamos do nome das coisas?
–– Para chamá-las, Rashid.
E começaram a correr entre as crateras e a brincar como se fosse a primeira vez que brincavam. Construíram pontes, baloiços e espantalhos. Jogaram às pedrinhas. Tomaram banho nas crateras onde havia uma água tão límpida que não parecia água, parecia luz. Conversaram, inventaram histórias, desenharam árvores. Ouviram o uivar dos lobos. Seguiram as sombras que caminhavam sozinhas. Tocaram música num alaúde. Inventaram brinquedos novos e palavras novas para os chamar. Subiram pelos braços da lua e tocaram a sua face bela. Trocaram de sítio uma bandeira que encontraram e cujas estrelas se tinham apagado. Colheram narcisos e outras flores com a foice de prata que há na lua.
E foi quando estavam na montanha mais alta da lua que ela começou a diminuir de tal maneira que deslizaram vertiginosamente pela encosta até chegarem à planície. Mas as próprias montanhas desapareciam à medida que a lua diminuía. Rashid e Bashu abraçaram-se, não por medo mas de alegria, pois sabiam que nada de mal lhes ia acontecer. Quando todo o espaço tinha desaparecido, Bashu acordou e ficou muito tempo a olhar os movimentos da floresta sem vontade nenhuma de levantar-se e caminhar. Pensava como era diferente o tempo na lua e como era diferente a vida na companhia de Rashid. E como lhe apetecia voltar para trás, pelo caminho dos sonhos.
–– Por que morrem os sonhos?..
Colheu umas folhas para comer e recomeçou a caminhar. Rashid não lhe saía da cabeça. Sempre fora o seu melhor amigo. Um dia tinha fugido da aldeia, quando as casas começaram a cair umas sobre as outras, como agora acontecera novamente. Pensava nas correrias no meio dos arrozais, na subida às árvores, nos baloiços vertiginosos suspensos de ramos altíssimos.
Pensava sobretudo nas tardes que passavam a tocar flauta e batuque de lata para espantar as aves que comiam as sementes. Como gostavam de ir para a floresta! Faziam espantalhos com panos coloridos e no sítio das mãos penduravam latas que o vento fazia oscilar e bater umas nas outras. As aves assustavam-se e eles iam sossegados para a floresta. Acreditavam que as árvores cresciam melhor ao som da música. Os sons entravam na corrente da seiva e, em certas ocasiões, podiam ver pequenos rebentos a germinar dos troncos. Ficavam tardes inteiras a ver o crescer das árvores. Talvez Rashid tivesse seguido também o mesmo caminho na floresta e o pudesse encontrar.