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CLUBE DA HISTORIA EM : O chão e a estrela

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 Era noite de Natal. Noite fria de estrelas geladas. O pinhal tinha ardido no verão. Quem lhe lançara fogo? Quem pudera queimar os pinheiros verdes que tiveram pinhas e flores, ninhos, troncos que as aves amparavam, quem os pudera queimar? Era noite de Natal. Talvez, longe daquele monte, em casas, casas diferentes em tamanho e bens materiais, estivessem muitas famílias fazendo a sua consoada. Com uma luz que não serve para destruir mas para alumiar, um fogo que serve para aquecer. Talvez, também, houvesse quem passasse o Natal sem companhia, velhos esquecidos de todos, crianças sem um beijo de ternura de alguém. Naquele pinhal queimado, com cinza escura dormindo no seu chão, veio pousar uma estrela como se fosse uma ave. Dirão: uma estrela não poisa, uma estrela cai e essas são as cadentes.

Até têm razão. Mas se todos os dias podemos sonhar, porque não o fazer numa noite gelada de Natal? A estrela poisou e iluminou aquele chão queimado. Os pinheiros que tinham ardido ergueram-se devagarinho, verdes, verdes na noite que já não era escura. A estrela estremecia num brilho que era riso. Riso que fazia esquecer as chamas vermelhas do fogo do verão passado.

Que fazia esquecer o choro estalido dos pinheiros a arder. Que fazia esquecer os pássaros fugidos num pavor de medo, os ninhos reduzidos a montinhos negros de nada, que fazia esquecer o sofrimento dos bombeiros tão cheios de coragem, a aflição do povo que trazia água nos braços cansados. Fogo e amargura. Então, uma menina, muito devagarinho (apesar da luz não conseguimos ver-lhe a cor do rosto, mas que importa?), acercou-se da estrela, que não era estrela-cadente, e murmurou-lhe docemente numa língua que as estrelas devem entender: — Podes ir para o céu, é lá o teu lugar e fazes falta à noite. Nós, todas as crianças do Mundo, vamos prender o fogo das florestas.

Vamos guardar os pinhais, todas as florestas, todos os seres, todas as flores e animais que nelas habitem. E uma criança não promete em vão. Depois calou-se. Levantou um pouco o seu vestidinho brilhante feito de gotas de orvalho para que não se sujasse nas cinzas negras e frias. E começou a andar pelo pinhal fora. E a estrela sorriu e caminhou para o céu. E tudo ficou em silêncio. Debaixo das cinzas, sementes cantavam.

Matilde Rosa Araújo O Chão e a Estrela Lisboa, Editorial Verbo, 2000