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Blog do Vavá da Luz

CLUBE DA HISTORIA EM : Entre duas margens

Entre duas margens
Natal de 43
Pierre morava numa quinta perto de Moncamp, o campo das abelhas. Élise vivia
mais abaixo, na outra margem do rio, não longe da aldeia de Salmiech.
Nessa altura, havia ainda uma escola para meninas e uma escola para meninos.
Era tempo de guerra, não se podia demorar no caminho.
Então, Élise e Pierre encontravam-se, ao domingo, na missa.
Já não se sabe quando começou a zanga que separava as duas famílias. O pai
Geniès falava de um burro da família que os Dourdou teriam deixado fugir no tempo do
bisavô. Dizia-se também que a avó de Élise e o tio-avô de Pierre se tinham apaixonado
um pelo outro, mas as famílias não tinham aceitado.
Dizia-se tanta coisa…
O certo é que os Dourdou e os Geniès estavam de relações cortadas.
Por isso, nenhuma ponte atravessava o rio.
Mas Élise e Pierre sabiam como e onde se
podiam encontrar.
No verão, a água descia e uma passagem
pouco funda formava-se à entrada do bosque de
Saint-Hilaire. Aí, escondida debaixo dos
castanheiros, tinham construído uma cabana de
ramos e de fetos. Através deles passavam raios de
sol, e essa cortina de luz era tão bela como um véu de noiva. Era lá que Pierre e Élise
imaginavam histórias…Construíam castelos com terra e aldeias com musgo. Nos
caminhos desertos, pisavam carreiros de formigas como se fossem outros tantos soldados
inimigos.
Em meados de agosto, Élise contou a Pierre que uma mulher tinha chegado a sua
casa. Estava sozinha, cheia de fome e grávida. A mãe e o pai discutiram, a mãe dizia alto
e bom som que não queria mais uma boca para sustentar.
Mas o pai tinha tomado uma decisão: a mulher ficara em casa deles.
O seu nome era Sarah mas deviam chamar-lhe Marie e dizer que era uma prima de
Paris. Pierre e Élise perguntavam a si mesmos por que razão aquela mulher tinha de se
esconder, mas «era a guerra», como sempre diziam os
adultos.
Sarah-Marie ensinou a Élise cantos que esta não
conhecia. E, um dia, arrancara uma estrela amarela
cosida no seu casaco para remendar a boneca de trapos
da menina. Élise adorava-a.
Pierre tinha esculpido para Élise uma cabeça de
cavalo numa vela. E esta deu-a a Marie. Amiga de
ambos, só ela sabia que as crianças se encontravam em segredo.
Com as chuvas do outono, o rio tinha aumentado o caudal. Era impossível passar
sem se molhar. Os dias eram mais pequenos, os pais já não se afastavam muito da
quinta, era difícil passar despercebido. Élise e Pierre viam-se menos. Mas, às vezes, Élise
corria até à curva do rio. Esperava pelo Pierre, sabia que ele passava por lá para ir
buscar os perus. Faziam sinais de um lado para o outro do rio.
Quando o inverno chegou, o rio ficou gelado. As crianças já não saíam de casa,
tinham muito frio com os seus tamancos de
madeira. A cabana deles cobrira-se de geada, e os
ramos mais velhos das árvores rachavam com o
peso da neve. Nos vidros embaciados das janelas,
Élise desenhava anjos e estrelas.
Estava à espera do Natal.
O ventre de Marie estava agora muito
redondinho; e ela cantava menos.
Pierre aprendia a tabuada com a mãe, e o pai ensinava-o a lidar com os utensílios.
Soletrava «seis vezes seis…», enquanto afiava o canivete na pedra de amolar de grés.
Também ele estava à espera do Natal. Tinha pedido uma espingarda de madeira e uma
boina nova. A sua família iria a pé à missa do galo, mas ele poderia ir no automóvel dos
vizinhos. Tinham-lhe prometido que passavam para o apanhar.
Andar de carro com a luz dos faróis seria como uma prenda. A igreja estaria toda
iluminada com velas, e tão fria que os bancos de madeira gelariam as nádegas, como
todos os anos.
E, na noite de Natal, Pierre veria Élise.
Os dias demoravam a passar, demoravam tanto…
Mas, por fim, a noite de Natal tinha chegado.
Élise esperava a hora da missa no seu quarto. As chamas da lareira pintavam as
paredes com ogres e duendes terrivelmente agitados. Para os afastar, Élise fazia tranças
nos cabelos de lã da boneca, cantando. Talvez no dia seguinte de manhã tivesse uma
camisola de malha para a sua boneca…Ou então uma caixa com tintas e pincéis?
Um barulho de vozes passou através das tábuas do soalho. Élise foi pé ante pé para
o cimo das escadas. Através do corrimão, via a mãe andar para cá e para lá, com os
braços cheios de toalhas.
― Já cá faltava isto! Vais ver, vamos perder a missa. Eu bem te avisei que esta
rapariga ia trazer problemas!
O pai não respondia. Pendurava uma bacia na lareira. E a mãe continuava:
― Meu Deus, temos de olhar por ela. Apesar de tudo, não podemos deixá-la
assim…
A mãe aproximava-se da escada. Élise voltou para a cama, com as faces vermelhas.
A mãe entrou com um casaco na mão:
― Veste isto. Corre até à casa dos Dourdou. Podes
passar naquele sítio pouco fundo, a água está gelada. Mas
bate primeiro com o pau para veres se o gelo está sólido, não
te esqueças! Diz à mãe Dourdou que precisamos dela aqui: é
preciso uma parteira, e já!
E como Élise, espantada, olhava para ela sem dizer
nada, acrescentou:
― Julgas que não vi a tua casinha, neste verão, com o filho dos Dourdou? Vamos,
corre. E não me chegues cá toda molhada!
Uma lanterna elétrica numa mão, um pau na outra, Élise saiu na noite branca de
luar. O caminho rangia sob os seus passos, as árvores lançavam longas sombras a seus
pés. Teria voltado logo para casa a correr, mas a frase da mãe não lhe saía da cabeça:
«Não vamos deixá-la assim…»
Marie corria perigo.
Élise pôs-se a cantar, primeiro baixinho, depois cada vez mais alto para ganhar
coragem. Pequenas nuvens de vapor saíam da sua boca e afastavam as sombras
maléficas. Élise caminhava depressa, chegaria em breve à passagem.
Em casa dos Dourdou preparavam-se para partir para a missa. A pé, era preciso
quase uma hora para chegar à aldeia. Se houvesse uma ponte, ganhariam tempo. Mas
não havia. Pierre enfiava a sua camisola de domingo,
quando ouviu…a voz de Élise. Sem dúvida o vento na sebe
pregava-lhe uma partida.
― Pierre! Abre, sou eu, a Élise,…Pierre!
O pai Dourdou calçava com muito esforço os sapatos
de verniz. Ofegante, disse:
― Não estão a chamar por ti?
Pierre encolheu os ombros:
― É o vento a soprar.
— Hoje não há vento. Vai abrir a porta.
Élise congelava com o frio.
Mas, quando viu o rosto assombrado de Pierre, desatou a rir:
― Sou eu, não me conheces? Parece que viste um fantasma!
Pierre estava estupefacto: pela primeira vez, desde muito antes do seu nascimento,
uma Geniès entrava na sua casa. Quando Élise
explicou que precisavam da Mme Dourdou em
casa deles, o pai pigarreou:
― E por que motivo precisam? Que eu saiba
a tua mãe não está à espera de nenhum
pequenote…?
Élise baixou os olhos:
― É para a nossa prima ― insinuou.
Pierre estendeu o casaco à sua mãe e disse:
― Vou contigo.
O pai murmurou algumas palavras no seu dialeto, enfiando o casaco de caça.
Falou alto ao filho mais velho:
― Jacques! Toma conta dos miúdos, temos um assunto a tratar em casa dos
Geniès.
Élise levou-os até à passagem. Pierre atravessou atrás dela mas, quando o pai
pousou o pé sobre o rio gelado, ouviu-se um estalido.
― Ai, valha-me Deus! Se eu for ao fundo, nunca mais me apanham ― disse,
avançando com os braços afastados como um malabarista, para ficar mais leve.
Em casa de Élise, tinham posto a cama de Marie
junto da lareira. Quando o grupo, roxo de frio, entrou
em casa, um ar gelado rodopiou lá dentro. A mãe de
Élise disse à do Pierre:
― O trabalho de parto está já muito adiantado.
E as duas mulheres apressaram-se à volta de
Marie.
Com a mão fria sobre a testa da sua amiga, Élise limpava-lhe as gotas de suor.
Na cozinha, Pierre e os dois homens estavam calados.
Com o chapéu na mão, o pai Dourdou acabou por dizer:
― Este inverno vai bem frio.
E o pai Geniès respondeu:
― Melhor tempo virá com a primavera.
Por fim, um grito de bebé rasgou a cortina de silêncio.
No momento em que a mãe Dourdou cortava o cordão
que unia Marie ao bebé, os sinos da igreja repicaram.
― Desta vez, perdemos a missa, é certo! ― disse a mãe de Élise.
Deu o bebé a Marie e acrescentou:
― Mas valeu a pena. É uma menina e muito
bonita!
¾ Vou chamar-lhe Myriam ― revelou Marie. ―
Na minha terra, é assim que se diz Marie.
Os sinos tocaram com mais intensidade.
Lá fora, a neve começou a cair.
― Foi complicado vir até aqui…― começou o pai Dourdou. ― Se houvesse uma
passagem, seria tudo mais fácil.
¾ Oh, sonhei com isso tantas vezes! ― respondeu o pai Geniès. ― Se houvesse
uma ponte, pouparia tempo quando fosse apanhar mel em Moncamp.
Depois de um silêncio, os dois homens olharam-se por fim, mas foi Pierre quem
disse:
― Não é difícil construir uma ponte.
¾ Oh, por favor! Papá… ¾ suplicou Élise.
¾ Pois é. Basta deitar mãos à obra ― acrescentou o
pai.
O bebé começou a gritar.
― Cá está um que tem fome ― disse a mãe Dourdou,
encostando docemente o nariz do bebé ao seio de Marie.
¾ E nós também temos fome ― anunciou a mãe de
Élise. ― Eu tinha preparado umas filhoses, querem
partilhá-las connosco?
Os Dourdou aceitaram com um sorriso.
Depois, o pai de Pierre declarou:
― Sobre a vossa prima, podem ter a certeza que não diremos nada. Primas assim,
toda a gente deveria cuidar bem delas nos dias que correm.
De olhos postos na filha agarrada ao seu peito, Marie murmurou um canto vindo da
noite dos tempos. Pierre ajudou Élise a pôr os pratos. O passeio de automóvel pouco
importava, Pierre preferia um Natal assim.
No dia seguinte de manhã, as crianças teriam os presentes.
A espingarda de madeira e a caixa para colorir, certamente. E laranjas também.
Mas o mais belo presente, era esse serão igual a nenhum
outro, o nascimento de Myriam e a esperança de uma ponte.
Como se, naquela noite de Natal, a guerra, por fim,
tivesse começado a perder terreno…
Cécile Roumiguière ; Natali Fortier
Entre deux rives – Noël 43
Paris, Gautier-Languereau, 2006
(Tradução e adaptação)