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Blog do Vavá da Luz

CLUBE DA HISTORIA EM : a criança-que-brinca-sozinha

Era uma vez uma criança que se aborrecia. Aborrecia-se no cinema, na ginástica, na bicicleta,
nas férias, na escola, a trincar um biscoito, a chupar um gelado, a jogar xadrez, dominó, computador…
Por isso lhe chamavam a criança-que-se-aborrece.
A criança-que-se-aborrece ficava num canto do quarto, com os braços cruzados, a suspirar o
dia todo. De vez em quando, por surpresa ou por acaso, divertia-se durante um quarto de segundo:
quando um robô glutão devorava um exército de seiscentos homens, quando a obscuridade caía sobre
o ecrã do computador, quando um tiranossauro perseguia, com os dentes todos arreganhados, um
dinossauro, quando traziam o seu bolo de aniversário cheio de velinhas acesas, sempre que rasgava o
papel de embrulho dos presentes de Natal…
Eram momentos em que o seu coração batia mais forte. Durante um minuto, não se aborrecia.
Mas, logo que o robô glutão terminava o almoço, quando o dinossauro engolia o tiranossauro, depois
das velas apagadas, voltava a suspirar.
— Como este robô glutão me aborrece! Como estes animais me contrariam! Quando é o meu
próximo aniversário?
Ou então:
— Já não quero estes brinquedos. Quero um asteroide telecomandado!
E choramingava, a fazer beicinho. Quando uma pessoa se aborrece, o mais fácil a fazer é
chorar. Os pais coçavam a cabeça. O que fazer? Tinham tentado tudo: fazer caretas de macaco, usar
perucas verdes e azuis. Tinham-se disfarçado de tomate maduro, de caneta de Coca-Cola, e de bebé
amuado. O filho nem sequer tinha sorrido.
Levaram-no então ao médico.
Este, depois de examinar os olhos lacrimejantes, a boca torta e o coração pesado como uma
pedra da criança-que-se-aborrece, disse:
— Não vejo nada de especial.
E receitou-lhe livros cómicos, desenhos animados divertidos, jogos hilariantes e desportos
radicais.
— Infelizmente, não tenho uma poção mágica que o faça rir como um louco. Leve-o até ao
jardim.
E acrescentou, sem convicção:
— Levem-no até ao jardim. Talvez vendo outras crianças…
Mas as outras crianças jogavam à bola ou à apanhada e a criança-que-se-aborrece achava tudo
isso… aborrecido.
Um dia, porém, aconteceu algo surpreendente. Quando estava sentada no banco de um jardim,
com os braços cruzados, a criança-que-se-aborrece reparou num rapazinho que brincava na relva. Era
a criança-que-brinca-sozinha.
Os olhos dela brilhavam e tinha um sorriso no canto do lábio. O mais interessante é que
brincava com uma caixa vazia. A criança-que-se-aborrece aproximou-se.
— O que estás a fazer? — perguntou, num tom desdenhoso.
— Estou a brincar, estou a divertir-me, não vês? — respondeu a criança-que-brinca-sozinha,
que fechou logo a sua caixinha.
— É impossível — tornou a outra, num tom de voz enervado. — Ninguém se diverte com uma
caixa vazia.
A criança-que-brinca-sozinha não disse nada e voltou a abrir a caixinha.
— Isso não passa de uma caixa de queijo velha e vazia! Uma caixa nojenta! — choramingou a
criança-que-se-aborrece.
— Talvez seja uma caixa velha e nojenta, mas não está vazia — continuou a outra. — Há sete
elefantes a guardá-la, porque os leões vão chegar à savana.
Fechou a caixa.
— Fechei-a para que eles não fujam. Agora são meus prisioneiros. Também estão lá dentro dez
pelicanos. Estás a vê-los com o bico comprido e a sua pequena bolsa? Nunca conseguirás adivinhar
tudo o que esta bolsa contém: um cobertorzinho de lã para o inverno, um despertador para se
levantarem de manhã, e três pelicanos bebés!
A criança-que-brinca-sozinha disse para consigo:
— Uma bolsa assim é muito prática. Os pelicanos têm uma bolsa, eu tenho uma caixa. Vou
fechá-la agora, porque ouço um exército de leões a aproximar-se.
E revirou os olhos.
— Os leões adoram os pelicanos.
— Ai, sim? — perguntou a criança-que-se-aborrece. — Sabia que comiam gazelas, veados e
girafas. Mas nunca li que comiam pelicanos.
— Eu também não, mas não é difícil de imaginar — tornou a outra. — Sou eu que invento tudo
isto. É preciso proteger os pelicanos a todo o custo.
E fechou a caixa.
— Enganei-os bem! Os leões já se foram embora.
E pôs-se a rir sozinha.
— Se abrir agora a caixa, voarão para o céu. Olha! Já estão a sobrevoar o Oceano, com os
bebés dentro da bolsa. Estão todos contentes!
E a criança-que-se-aborrece ergueu a cabeça, maravilhada, embora não visse nada.
— Dentro da minha caixa, ainda há muitas outras histórias — continuou a criança-que-brincasozinha.
— Há três milhões de ideias, cento e cinquenta biliões de pelicanos!
E os seus olhos brilhavam. A criança-que-se-aborrece sorriu. Compreendeu que, com caixa ou
sem caixa, havia milhões de brinquedos dentro da cabeça de uma criança. Percebeu isto tão bem que
disse à outra:
— Acho que a tua caixa funciona como a tua cabeça. Abre-la e fecha-la, e fazes o que queres
com ela.
— Mas tu podes fazer o mesmo! — encorajou a criança-que-brinca-sozinha. — Só precisas de
uns pozinhos mágicos!
E, com muita delicadeza, virou a caixa de pernas para o ar, fez um passe de magia, e reabriu-a.
— Dá-me a tua mão — pediu.
A outra assim fez.
— Estás a ver, aqui estão uns pozinhos da minha caixa mágica. Deita-os na tua caixa, esperas
um dia e uma noite, e aparecem-te fadas, reis, salteadores, dinossauros, tudo o que tu quiseres.
Nunca mais te sentirás aborrecida!
E começaram as duas a rir e a inventar histórias.

Sophie Carquain
Cent histoires du soir
Paris, Ed. Marabout, 2000
(Tradução e adaptação)