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Blog do Vavá da Luz

CLUBE DA HISTORIA EM : Chamo-me Teresa de Calcutá

Chamo-me Teresa de Calcutá
Olá…
O meu nome é Agnes Gonxha Bojaxhiu, mas todos me conhecem por Teresa de
Calcutá. Nunca gostei de falar de mim e confesso que nem sequer li os livros que as
pessoas escreveram a meu respeito. Mas desta vez vou fazer uma exceção, pois os jovens
ocuparam sempre um lugar especial no meu coração.
Dediquei a minha vida aos mais pobres. Em troca, recebi deles muitíssimo mais do
que lhes dei. Transmitiram-me a sua alegria e a sua liberdade. Demonstraram-me que
podemos gozar o que a vida nos oferece sem necessidade de possuirmos bens
materiais… Deram-me lições de generosidade e de solidariedade. Ensinaram-me a
enfrentar as dificuldades com firmeza. Ofereceram-me sempre os seus sorrisos.
Tentei trazer o meu grão de areia para a luta contra a injustiça: no mundo uns
quantos têm muitíssimo e, todavia, há muitos que vivem com quase nada. Nesta luta
acompanharam-me sempre as Irmãs da Caridade e milhares de pessoas dispostas a
colaborar. Nos momentos difíceis, elas sempre me animaram e me devolveram a fé no
ser humano.
Falou-se da força de uma mulher tão pequena e com um aspeto tão frágil como eu.
Vou contar-vos um segredo. A força de espírito que tinha vinha-me diretamente de Deus.
Acreditei n’Ele com toda a minha fé durante toda a vida e Ele nunca me abandonou.
O contador de histórias
Nasci em Skopje, uma cidade albanesa situada no vale do rio Vardar, num mês de
agosto muito quente. No dia seguinte os meus pais, que eram católicos, levaram-me a
batizar, cheios de alegria, à Igreja do Sagrado Coração. Decidiram dar-me o nome de
Agnes. É verdade, o meu nome de batismo é Agnes, embora mais tarde tenha escolhido
chamar-me Teresa, como a santa de Lisieux. Mas isso aconteceu há muitos anos.
Eu, os meus pais, Nikole e Dranafile, e os meus irmãos, Aga e Lazar, constituímos
uma família simples e feliz. Agora, quando olho para trás, apercebo-me da grande sorte
que tive. Apesar de ter morrido quando eu tinha apenas oito anos, recordo muito bem o
meu pai! Como era caixeiro-viajante, andava todo o dia de cá para lá. Quando regressava
das suas longas viagens, em casa organizava-se uma verdadeira festa. A minha mãe
penteava-nos, vestíamos roupas novas e esperávamo-lo todos na sala, impacientes. Ela
também se arranjava e se perfumava para o receber: ficava tão bonita…! Embora eu
pensasse que ela não precisava de nenhum adorno para ficar linda, porque a minha mãe
era a mulher mais linda do mundo.
Quando a campainha da porta tocava, eu ficava muito nervosa! Ao ouvir a voz
quente do meu pai a chamar por todos, não conseguia aguentar mais, desatava a correr e
saltava-lhe para os braços. Ele agarrava-me entre gargalhadas e fazia-me cócegas com o
seu farto bigode. Para mim, o meu pai era uma espécie de Rei Mago com barbicha de
cabra, porque vinha sempre das suas viagens carregado de prendas. Mas o melhor de
tudo eram as histórias. Gostava de me sentar nos seus joelhos e ouvi-lo contar relatos
das viagens. Nesses momentos, ficava com um olhar sonhador e falava-nos de países
distantes. Enquanto o ouvíamos, eu viajava com a imaginação agarrada às suas palavras.
Não sabia que, com o tempo, iria ser como ele, uma viajante infatigável.
Infelizmente, poucos anos pude gozar da sua companhia. O meu pai era uma
pessoa comprometida, que lutava para que a Albânia se tornasse uma nação
independente. Por isso, por diversas ocasiões, acolheu em casa defensores da liberdade
do nosso país.
Nessa época, o meu pai tinha quarenta e cinco anos e era um homem saudável e
forte. Um dia, aconteceu uma coisa muito estranha: quando estava a assistir a uma das
suas reuniões, de repente sentiu-se indisposto e teve de ser internado no hospital com
fortes hemorragias. Embora os médicos tenham tentado por todos os meios salvar-lhe a
vida, nada puderam fazer. Quer eles quer a minha mãe estavam convencidos de que
tinha sido envenenado. Sinto-me muito orgulhosa, porque morreu por defender os seus
ideais.
Pobre mamã
A minha mãe sofreu imenso com a morte do meu pai! Ela que tanto o adorava e que
tinha dedicado a sua vida a cuidar de todos nós, de repente ficou sozinha com três filhos
de oito, onze e treze anos que tinha de alimentar, sem trabalho. Mas não pensem que
passava o tempo a chorar e a ter pena de si. Não. Era uma mulher forte e logo se pôs a
costurar, a bordar e a vender roupa, e assim conseguiu criar-nos.
A minha mãe tinha um coração enorme. Ajudava toda a gente que precisava. A
minha casa estava sempre aberta. Lembro-me de uma velhinha que todos os dias se
sentava a comer à nossa mesa ou dos seis filhos de uma viúva que vieram viver
connosco quando ficaram órfãos… Mas o que mais me impressionava era a ternura e a
delicadeza com que cuidava de uma velha alcoólica, com o corpo cheio de chagas, como
se se tratasse de alguém de família. A minha mãe era de facto uma mulher
profundamente católica. Transmitiu-me a sua empatia, essa qualidade que faz viver as
desgraças e as alegrias dos outros como se fossem nossas.
Entre música e livros
Tive uma infância muito musical. Em casa todos compúnhamos, cantávamos e
tocávamos instrumentos juntos. Eu gostava de tocar bandolim e de cantar. Eu e a minha
irmã Aga íamos todos os dias ao coro da igreja e… éramos nós que cantávamos os solos!
Acho que não o fazíamos mal porque as pessoas nos chamavam «os dois rouxinóis».
Embora fosse uma menina alegre e comunicativa e tivesse muitas amigas, também
gostava de me isolar de todos e de passar horas a ler. Os livros fascinavam-me. Quando
um livro novo me vinha parar às mãos, o coração acelerava-se ao pensar que aventuras
iria viver, por que lugares exóticos viajaria e quantas pessoas interessantes viria a
conhecer, lendo-o.
Mas antes de o ler já tirava partido dele, folheando as páginas, tocando-lhe ou
cheirando-o. Quando o momento mágico de o começar a ler pela primeira vez chegava,
abandonava-me a ele, disposta a viver um sonho. E se me sentia triste ou preocupada
com alguma coisa, os livros serviam-me sempre de refúgio e de conforto. Tinha a certeza
de que as amigas que me diziam que não gostavam de ler ainda não tinham tido a sorte
de encontrar os livros adequados.
De tudo o que eu lia então, do que eu mais gostava era das revistas missionárias
que o pároco da igreja do Sagrado Coração me emprestava. Nelas se contava a vida de
missionários que viajavam para lugares longínquos para ajudar as pessoas. Eram
pessoas corajosas e generosas que iam para onde eram necessárias. Eu tinha tanta
admiração por elas que sonhava um dia tornar-me missionária também.
Um sacerdote entusiasta
Quando o padre Jambrecovich chegou à igreja do Sagrado Coração, a vida dos
jovens católicos de Skopje deu uma grande volta. O padre Jambrecovich fundou a
Confraria das Filhas de Maria, à qual eu e a minha irmã Aga passámos a pertencer. Nessa
Confraria, para além de nos divertirmos e de fazermos muitos amigos, aprendemos
muito: ciências, medicina, teatro… Até aprendemos a dirigir uma orquestra.
É verdade, o sacerdote também nos ensinava a apreciar poesia. Como eu gostava
de ler poemas… e de os escrever! Ainda me lembro de alguns dos versos que escrevi
quando era jovem.
Além disso, o padre Jambrecovich organizou uma biblioteca e eu podia ir lá buscar
todos os livros que quisesse. Podem imaginar como me sentia feliz! Aquele sacerdote era
uma pessoa maravilhosa, entusiasta e alegre, que só pensava em fazer felizes os que o
rodeavam. E, embora nessa altura ainda não tivesse decidido o que ia fazer na vida, de
uma coisa eu estava certa: ia tentar com todas as minhas forças tornar-me semelhante
ao padre Jambrecovich.
E não ficou por aqui a influência que este grande homem exerceu sobre mim. Em
1924, alguns sacerdotes jugoslavos foram para Bengala, na Índia, como missionários. O
padre Jambrecovich lia-nos cartas que estes sacerdotes lhe enviavam com as suas
experiências. Eu ficava de boca aberta ao ouvir falar do trabalho que faziam e o coração
apertava-se-me no peito quando falavam das condições tão miseráveis em que a
população de Bengala vivia. Isso foi essencial na minha vida.
Quando os missionários nos vieram visitar a Skopje e pude falar com eles, tomei
uma decisão muito firme que ninguém seria capaz de fazer mudar: eu também iria como
missionária para a Índia.
Foi muito difícil comunicar esta decisão à minha família. A minha mãe não levantou
qualquer problema. Mas eu sabia que a dor que sentia por ter de se separar da filha era
enorme. O meu irmão Lazar não foi assim tão compreensivo: escreveu-me uma carta da
Academia Militar de Tirana usando todos os argumentos possíveis para me fazer mudar
de opinião. Para eles não era fácil imaginar a pequena Agnes num país tão longínquo e
de costumes tão diferentes.
— E porquê a Índia? — perguntavam-me.
Uma religião diferente
Era lógico que a ideia tão firme de me ir embora para a Índia fosse surpreendente.
Na realidade, aquele era um país onde havia poucos católicos e mais de três quartos da
população praticava a religião hindu. A primeira coisa que fiz foi começar a ler montes
de livros sobre a Índia e sobretudo sobre a sua religião para poder entender melhor o
país que ia ser o meu. Quando alguém chega a um lugar estranho deve esforçar-se por
compreender e respeitar os seus costumes.
Muitas coisas me fascinaram no hinduísmo e outras, é claro, chocaram-me
profundamente do meu ponto de vista ocidental. Vou dizer-vos de uma maneira simples
em que consiste essa religião, pois acho que é importante conhecê-la para se
compreender a Índia, já que o povo hindu é um povo muito espiritual e dá muita
importância à religião.
O hinduísmo é uma religião que presta culto a muitos deuses. Mas entre todos
destacam-se três: Brahma, que é para eles o criador do mundo, Vixnu, que é o
conservador do mundo, e Xiva, que é o destruidor. Por certo já alguma vez viram uma
imagem de Brahma, um deus multicolor e com muitos braços. Todos os deuses vivem no
mais alto do céu, que está no cimo de uma montanha à qual os seres humanos não
podem subir: o monte Meru.
Os hindus acreditam que, quando uma pessoa morre, a sua alma volta a nascer
noutro corpo. A isto se chama reencarnação. Se alguém não se tiver portado bem
durante a sua vida, ou nas vidas anteriores, quando morrer reencarnará num animal ou
num intocável. O que é um intocável? Não se preocupem. Mais adiante explicar-vos-ei,
porque foram os intocáveis que ocuparam o meu coração na Índia. Se, pelo contrário, o
seu karma for positivo, isto é, se a pessoa se tiver portado bem nesta vida e nas
anteriores, então a sua alma reencarnará no corpo de um membro de uma das castas
privilegiadas (sacerdotes, mestres, nobres, guerreiros…).
A meta é atingir a perfeição depois de sucessivas reencarnações para se reunir com
o deus Brahma.
As castas e os intocáveis
De acordo com o hinduísmo, as pessoas dividem-se em quatro castas e cada uma
tem origem numa parte do corpo de Brahma: brâmanes (sacerdotes ou mestres), que
têm origem na cabeça; xátrias (nobres e guerreiros), cuja origem está nos braços; vaixiás
(comerciantes) que são provenientes do estômago; e sudras (artesãos, operários e
camponeses) que constituem a casta mais baixa e têm origem nos pés de Brahma.
Quando alguém nasce numa casta, não deve fazer nada para sair dela e ascender a
outro nível superior, porque isto aborreceria os deuses e estes não permitiriam que essa
pessoa atingisse a perfeição. Por esta razão, o hindu tem de se resignar à vida que lhe
coube sem protestar ou lutar para a mudar. E fora de todas as castas, porque não
pertencem a nenhuma parte do corpo de Brahma, estão os intocáveis ou dalits. Coitados
dos meus queridos dalits, os mais pobres dos pobres, os doentes, os que não têm direito
a nada…
Os intocáveis foram marginalizados durante séculos pelo resto da população.
Como são considerados impuros, o contacto com eles (ou mesmo com a sua sombra)
contamina, daí o seu nome. Se um intocável tocar num brâmane, este tem de se
submeter a um cuidadoso banho ritual com uma cerimónia religiosa para se
descontaminar. Por isso, em muitos lugares, a sua chegada tem de ser anunciada com
campainhas e tambores, e têm que se manter afastados dos brâmanes, a uma distância
de vinte e dois metros. Além disso, os intocáveis estão proibidos de entrar nos templos e
locais de oração.
A maior parte dos intocáveis sobrevive graças aos trabalhos considerados
impuros, como limpar sanitários ou recolher lixo. A discriminação a que têm sido
submetidos durante séculos é de tal modo marcada que em alguns salões de chá lhes
servem o chá em taças especiais, velhas e
falhadas, que eles mesmos têm de lavar quando
acabam de beber. Felizmente, este sistema de
castas foi proibido anos depois da minha chegada
à Índia, em 1947, embora continue a vigorar em
muitas partes do país.
Na Índia, para além da religião hindu,
praticam-se outras como a muçulmana, a cristã, o
siquismo, o budismo, o jainismo e o parsis. Se alguma vez viajar para este país e vir uns
senhores com a boca tapada a agitar uma espécie de penacho à sua frente, são os
jainistas. Os jainistas respeitam tanto a vida que andam de boca tapada para evitar que
nela entre algum inseto e que o possam matar. E agitam essa espécie de penacho para
afugentar os animais e assim não correm o risco de pisar algum. Talvez tudo isto nos
pareça exagerado, mas é a sua maneira de considerarem a vida como algo de
verdadeiramente sagrado. Por muitas razões, este país tão cheio de contrastes e tão
diferente da Albânia, depressa se viria a tornar o meu lar e os indianos a minha
verdadeira família.
Lágrimas de despedida
Foi numa noite de setembro que apanhei o comboio que me levaria para longe de
Skopje, dos meus amigos e da minha família… O meu coração palpitava como se nele
cavalgassem cem cavalos. No meu interior lutavam sentimentos muito diferentes: a
emoção pelo que me esperava, a impaciência para começar uma nova vida, o medo do
desconhecido e a dor por deixar os meus entes queridos… O mais difícil foi dizer adeus à
minha mãe e à minha irmã na estação de Zagrebe. Quando as voltaria a ver? Imaginem a
situação: eu, que era uma jovem de dezoito anos que nunca se tinha separado da família,
do dia para a noite via-me a viajar num comboio com destino a Dublin. Pelo menos ia
acompanhada por Betika, uma rapariga que também queria ingressar na ordem. Durante
a viagem confortámo-nos mutuamente, falando das nossas ilusões e dos nossos projetos.
Tínhamos ambas um enorme desejo de chegar à Índia. Mas ainda tínhamos de passar
seis semanas em Dublin para aprender umas noções de inglês. Não se esqueçam de que
naquela altura a Índia era uma colónia britânica. O que me valia era ter alguma
facilidade para as línguas…
Aquelas seis semanas pareceram-me intermináveis, pois estava ansiosa por chegar
a Calcutá. Finalmente, no mês de dezembro, zarpámos num grande barco em direção à
Índia. Haveria melhor prenda de Natal?
A agitação de Calcutá
Depois de uma série de paragens e transbordos, no dia 6 de janeiro de 1929
chegámos a Calcutá. O impacto foi enorme ao descermos do comboio. A estação era um
formigueiro de gente: moços que levavam e traziam malas em carrinhos de madeira,
vendedores que ofereciam toda a espécie de artigos: saris, pentes, laranjas e colares de
flores… Monges itinerantes que, a troco de algumas moedas, nos deitavam água sagrada
do Ganges na boca, limpadores de orelhas, astrólogos empenhados em adivinhar o
futuro, mendigos e leprosos que nos assaltavam para pedir esmola … E entre toda aquela
maré humana, viviam famílias inteiras, deitadas em qualquer canto da estação, até que
algum polícia as mandasse embora dali.
O espetáculo era impressionante. Embora eu já soubesse que em Calcutá sete em
cada dez famílias não tinha posses nem para poder comprar um quilo de arroz por dia e
que muita gente vivia e morria na rua, aquele primeiro contacto com a realidade da
cidade impressionou-me tanto que fiquei o tempo inteiro com o coração apertado.
Mas o que mais me custou foi subir para o rickshaw para fazer o caminho para
casa. Os rickshaws são uma espécie de carros de duas rodas para transportar pessoas,
mas… puxados por homens! Sim, são os chamados “homens-cavalo”. Cada um puxa o seu
rickshaw entre o trânsito de endoidecer de Calcutá, subindo ladeiras e vencendo
obstáculos, com uma temperatura no verão de quarenta graus à sombra. Eu passei todo
o tempo a rezar para que não fôssemos uma carga muito pesada…
E começámos a circular com o rickshaw pela cidade. Nunca na minha vida tinha
visto umas ruas tão cheias de trânsito! Carrinhos de mão dos moços, bicicletas
desconjuntadas, grandes camionetas, autocarros com pessoas encarrapitadas nos
guarda-lamas ou enganchadas na roda sobressalente, táxis, motocicletas, rickshaws com
dois ou três passageiros… e, de vez em quando, no meio de todo aquele caos
ensurdecedor, uma vaca sagrada.
Aquele primeiro passeio por Calcutá foi muito instrutivo para mim. Ia com os olhos
arregalados para não perder nada. Os passeios estavam cheios de gente: vendedores que
ofereciam perfumes ou tecidos coloridos, famílias que viviam nos passeios e que ali
passavam chapatís (tortas de trigo), crianças oferecendo grinaldas de flores… Apesar da
miséria ser por demais evidente, a vida fervilhava por aquelas ruas. As cores, o
movimento, o sorriso constante dos
indianos convidava a viver.
Em contraste com o lixo
acumulado pelas ruas, com os
mendigos e com os sem-abrigo,
erguiam-se edifícios públicos
soberbos, monumentos fantásticos e
residências particulares luxuosíssimas,
na sua maioria propriedade dos ingleses.
Quando eu cheguei a Calcutá, nos clubes elegantes estavam pendurados cartazes
que diziam «É proibida a entrada aos cães e aos indianos».
Teresa, a bengali
Fiz o meu noviciado em Darjeeling e ali estudei hindi e bengali. Queria falar com os
indianos nas suas línguas originais. Quando as noviças se consagram, mudam de nome
para indicar que começam uma nova vida. Eu escolhi o nome de Irmã Maria Teresa do
Menino Jesus, em homenagem a Teresa de Lisieux, a santa das pequenas coisas.
Gostava de ser professora. Ao regressar a Calcutá, depois do noviciado, dei aulas
nos colégios que eram dirigidos pelas Irmãs do Loreto. E como dava muitas aulas em
bengali, depressa fiquei a ser conhecida como «Teresa, a bengali». O colégio de Santa
Maria recebia as raparigas que eram provenientes de famílias da alta sociedade. O
Loreto Entally acolhia e educava as alunas provenientes de famílias pobres. Que
diferente era a vida destas meninas relativamente à que eu tinha levado na Albânia!
Desde muito pequenas ocuparam-se das tarefas domésticas e trabalhavam como
adultas: levantavam-se cedo para ir buscar água, apanhar o excremento das vacas para
acender o lume, ao mesmo tempo que criavam os irmãos, limpavam a casa… Muito
poucas podiam ir à escola. A única coisa que os seus pais queriam era que se
preparassem bem para se tornarem boas esposas, isto é, que aprendessem a obedecer e
a servir o marido sem responder. Um marido que nem sequer tinha sido escolhido por
elas, mas pelas famílias. Casavam-se com apenas dez anos, embora continuassem a viver
com os pais até terem a primeira 1ª menstruação. E além disso, havia o problema do
dote, que constituía uma verdadeira preocupação para os pais pobres.
Para se poder casar, uma mulher indiana tinha de levar para o casamento uma
série de bens que os pais iam reunindo, com muito esforço, durante toda a vida. Se uma
mulher não tivesse dote, só podia aspirar a casar-se com um intocável, um leproso…
Assim os pais faziam verdadeiras loucuras para conseguir o famoso dote.
Digamos que nem as crianças pobres tinham uma vida fácil.
Com sete ou oito anos já tinham muitas coisas para fazer, para
poderem ajudar as famílias. Faziam de vendedores de ferro-velho,
ajudavam em oficinas ou em tabernas. Mas o trabalho mais duro era
o das fábricas. Passavam ali dez horas por dia, sem descansar, em
recintos mal ventilados e, frequentemente, respirando gases
tóxicos. Todos estes infortúnios por um punhado de arroz ou
algumas moedas…
E, no entanto, aquelas crianças estavam sempre contentes. Bastava-lhes uma pedra
atada a um cordel para fazer as vezes de corda de saltar, uma chapa para a qual subiam
para deslizarem sobre o chão, e alguns berlindes feitos de pedras para serem felizes.
Nunca os ouvia queixarem-se de aborrecimento ou chorarem porque queriam algo que
não tinham. Uma garrafa vazia, um pedaço de trapo ou uma lata podia tornar-se para
eles uma verdadeira joia. Nos bairros pobres nada se deitava fora. Com as rodas de
metal dos automóveis e paus rematados por ganchos, por exemplo, fabricavam-se arcos
que rodavam pelas ruas entre os risos dos seus donos. Mas o brinquedo de que mais
gostavam, o que divertia durante horas grandes e pequenos, era o papagaio de papel.
Feitos com canas, papel e fio ou com pedaços de tecido, voavam pelo céu de Calcutá
centenas deles.
O sorriso fácil e luminoso daquelas crianças ensinou-me algo muito importante: ter
poucas coisas não torna as pessoas mais infelizes.
O drama da guerra
Gostei muito de ensinar as crianças, mas depressa aquela tarefa me pareceu
insuficiente. Havia tanto que fazer…! Assim, decidi ocupar o meu tempo livre a visitar os
bairros pobres e os hospitais. E o que ali vi mudou para sempre a minha vida.
As condições de miséria em que aquelas pessoas viviam despertaram em mim um
sentimento profundo de raiva. Raiva por a riqueza do mundo estar tão injustamente
distribuída… Vinte por cento da população mundial gozava de oitenta por cento dessa
riqueza, enquanto oitenta por cento da população tinha de se conformar em partilhar os
vinte por cento que restavam. Era como se convidasses dez amigos para o teu
aniversário e desses oito pedaços de bolo para que dois deles comessem e dois pedaços
para serem divididos pelos outros oito amigos. Seria injusto, não achas? Tinha de fazer
alguma coisa, mesmo que fosse pouquinho, para remediar aquela situação.
Infelizmente, durante estes anos, tive também a oportunidade de viver as
dramáticas consequências da Segunda Guerra Mundial. Uma guerra para a qual a Índia
se viu arrastada pela Inglaterra e na qual morreram milhares de pessoas e outras tantas
se viram obrigadas a refugiar-se em Calcutá
para continuar a viver. Recordo-me de
quantos bebés foram abandonados pelos seus
pais às portas do Loreto na esperança de que
cuidássemos deles.
E como se isto fosse pouco, alguns anos
depois os conflitos entre hindus e
muçulmanos originaram um banho de sangue
em Calcutá. O balanço do desastre foi de cerca de cinco mil mortos e de mais de quinze
mil feridos. O espetáculo que se via pelas ruas era tão desolador que preferi que as
meninas que viviam longe ficassem no colégio e não tivessem de ir para casa presenciar
aquelas cenas horríveis.
Todas as experiências que vivi deixaram em mim uma marca muito profunda. No
dia 10 de setembro de 1946, quando viajava de comboio para Darjeeling, a fim de fazer o
meu retiro espiritual, de repente senti, com toda a clareza, que Jesus me pedia que me
dedicasse aos mais pobres dos pobres, aos abandonados, aos que não tinham qualquer
abrigo…
Uma grande decisão
Em Darjeeling, tomei uma decisão importante: fundaria uma congregação que iria
trabalhar para os mais pobres, nos bairros mais miseráveis. Esta congregação
chamar-se-ia As Missionárias da Caridade e caracterizar-se-ia pelo seu espírito de
pobreza e alegria.
Não foi nada fácil comunicar às irmãs do Loreto a minha decisão de as abandonar.
Algumas choraram durante algum tempo e outras ficaram tão desgostosas que até
ficaram de cama. Ao que parece, gostavam de mim na Loreto House e eu ia fazer muita
falta… Mas o mais difícil foi conseguir autorização. Depois de muitas cartas, viagens e
diligências de sacerdotes que acreditavam no meu projeto, e de um ano inteiro de
espera, chegou, por fim, a autorização para abandonar Loreto por um ano. Cheia de
entusiasmo, fui a uma loja de Calcutá e comprei três saris brancos com franjas azuis.
Tirei o hábito preto das irmãs do Loreto e, no dia 16 de agosto de 1948, com cinco rupias
no bolso, apanhei um comboio para Patna, onde passei uma temporada a fim de adquirir
os conhecimentos médicos de que necessitava.
Aquilo que mais me custava era pegar nos bebés. Eram tão pequenos, tão frágeis…!
E tinha tanto medo de os magoar! Com o resto não tive problemas. Aprendi a dar
injeções, a medir a tensão, a mudar ligaduras… E, sobretudo, aprendi como era
importante para um doente ser tratado com afeto. Uma carícia, um sorriso, um gesto de
ternura faziam mais efeito, em muitas ocasiões, do que o melhor dos medicamentos.
Não estive muito tempo em Patna. Já tinha esperado demasiado. Quando me senti
mais ou menos preparada, parti para Calcutá.
Cansada, mas feliz
Ao chegar a Calcutá entrei em Motijhil, um dos bairros mais pobres da cidade. Não
levava dinheiro nem tinha para onde ir, mas confiava que Deus me ajudaria. A primeira
coisa que fiz foi montar uma escola na rua, num espaço entre barracas. A lama
servia-nos de quadro preto. Ia traçando nele as letras do alfabeto bengali para ensinar as
crianças a ler e a escrever. Elas sentavam-se no chão à minha volta, pois não tínhamos
nem cadeiras nem mesas… nem nada! Bom, na verdade, tínhamos muito: as crianças
tinham um interesse enorme em aprender e eu tinha muita vontade de as ensinar.
As crianças vinham felizes porque, para além de aprenderem e de se libertarem
das árduas tarefas domésticas, bebiam um copo de leite ao meio-dia e recebiam
sabonetes como recompensa. Estavam mais do que contentes! Em casa não tinham
sabão e costumavam lavar-se com uma mistura de areia e cinza. A segunda barraca foi o
primeiro lar para indigentes doentes e moribundos.
Os alunos continuavam a aumentar e eram muitos os doentes que vinham à
barraca em busca de um pouco de conforto. E eu trabalhava sem descanso, mas as
minhas duas mãos não eram suficientes. Gostaria de ter quatro, seis, oito mãos para os
poder atender a todos. E, mais uma vez, Deus estava perto para responder aos meus
anseios.
As Irmãs da Caridade
A primeira a chegar para entrar na ordem foi Subhasini Das, uma antiga aluna
minha. A mãe queria obrigá-la a casar-se e, como ela
se opôs, levou o caso aos tribunais. O juiz decidiu
confiá-la à minha proteção e tornou-se a primeira
noviça das Irmãs da Caridade, a futura irmã Agnes.
E Subhasini não foi a única. Mais tarde chegou
Magdalena Gómes. E depois Dorothy, Margaret,
Mary e Bernard. Estavam todas decididas a fazer
parte da congregação.
A primeira coisa que as irmãs aprendiam era a sobreviver no meio da pobreza.
Para atender e ajudar os que nada tinham devíamos viver como eles. Lavávamos a roupa
em baldes comunitários, lavávamos os dentes com cinza e guardávamos a nossa roupa
numa pequena trouxa. As nossas únicas posses eram os nossos saris, roupa interior de
tecido grosseiro, um par de sandálias, um crucifixo, um rosário, um guarda-chuva, uma
tina para lavar e uma enxerga fina que fazia as vezes de cama. Havia uma coisa que era
para nós muito clara: não queríamos que nos acontecesse o que acontecera com outras
ordens religiosas ao longo da História, as quais começaram por servir os pobres para
acabarem, sem se aperceberem disso, a servir os ricos.
Vivíamos numa casa de dois pisos numa das principais avenidas de Calcutá. Um
muçulmano tinha-no-la cedido por muito pouco dinheiro. Não era muito habitual um
muçulmano ceder a sua casa para um convento católico. Mas ele admirava o nosso
trabalho e sabia que atendíamos doentes de todas as religiões, que respeitávamos
profundamente as suas crenças e que, por isso, não tentávamos mudá-las.
Disciplina e sorrisos
A nossa vida era muito simples e disciplinada. Às oito da manhã saíamos todas de
casa. Primeiro, dedicávamo-nos a atender os doentes e desamparados até à hora do
almoço. À tarde, era a altura das aulas e do estudo. Depois da ceia tínhamos um pouco de
recreio para conversar e contarmos as nossas experiências do dia. Embora a maior parte
do tempo fosse dedicado ao trabalho, também havia intervalos para a diversão. Recordo
como nos rimos no dia em que uma das irmãs teve de ir à missa com o sari e uns sapatos
vermelhos de tacão muito alto, estilo agulha, porque, como vivíamos de doações, eram
os únicos que restavam. Ou quando fizemos saris com sacos de trigo búlgaro e se podia
ler nos tecidos: «Proibida a revenda».
Recordo também, com especial carinho, o nosso primeiro Natal. Decorámos o
nosso refeitório com bandeirinhas e bolas e estive, durante toda a noite, a preparar
prendas para as irmãs: um sabonete, um cabide para a roupa, um lápis de cor, um S.
Cristóvão… Eu queria que as Irmãs da
Caridade fossem conhecidas pelo seu sorriso e
pela sua amabilidade. Se alguma das noviças
estivesse tão atarefada que não respondesse a
uma saudação, repreendia-a carinhosamente.
Embora as nossas tarefas fossem por vezes
duras ou desagradáveis, devíamos fazê-las
com alegria e com amor. Por mais
repugnância que nos causassem as chagas ou úlceras de um doente, este nunca devia
notar o mínimo gesto de rejeição no nosso rosto.
Um lar junto a Kali
Uma manhã, quando me dirigia para os bairros pobres, vi uma mulher que
agonizava num passeio. Aproximei-me dela, levantei-a nos braços e levei-a ao hospital
Campbell. Mas, ao tentar que a aceitassem naquele centro hospitalar, os médicos
disseram-me que não, que ali só atendiam pessoas que tivessem possibilidades de cura,
e aquela mulher não tinha cura.
Na verdade, só os ricos tinham camas para morrer de maneira digna nos hospitais.
Naquele dia percebi que precisávamos de abrir um lar para moribundos. Um lugar onde
os pobres pudessem morrer com dignidade, numa cama limpa, e com afeto e carinho à
sua volta. Um lugar onde morressem em paz com a sua fé, quer fosse hindu, muçulmana,
budista, católica ou protestante. Os hindus receberiam água do Ganges nos lábios; os
muçulmanos leituras do Corão; os cristãos o sacramento da extrema-unção. Mas onde?
Sem perder um segundo, fomos contar ao Presidente da Câmara os nossos projetos
e pedir-lhe que nos cedesse um local para os moribundos. Depois de uns dias de espera,
chegou a resposta: dava-nos a escolher entre um lugar no centro de Calcutá e um
albergue para peregrinos junto ao templo da deusa Kali. A decisão era evidente.
Escolhemos o albergue. O templo de Kali era um lugar de peregrinação muito famoso ao
qual se dirigiam os hindus para honrar a deusa e para descansar. Não havia hindu que
não desejasse que, ao morrer, o seu corpo fosse incinerado em Kalighat. Seria esse o
melhor lugar para a nossa gente repousar antes de ir para o céu, junto da sua venerada
Kali, a deusa da morte e da fertilidade.
Kali, a Negra
Conta uma lenda hindu que há centenas de milhares de anos o demónio do Mal
devastava a Terra, alterando as estações, sem que ninguém pudesse acabar com ele.
Brahma, o Criador, disse então que o único que conseguiria vencer o demónio do Mal
seria um filho do deus Xiva. Mas Xiva estava abatido de dor com a morte da esposa e
dedicava-se a vaguear pelas aldeias, mendigando com os cabelos muito longos e o corpo
coberto de cinza. Fosse de que maneira fosse, não aceitaria voltar a casar-se. Foi por isso
necessário pedir a Kama, que é o deus do desejo e do amor, que despertasse de novo o
amor em Xiva. Assim que Kama pegou no seu arco de flores, apontou ao coração de Xiva
e disparou contra ele uma flecha de jasmim. A partir daquele instante, Xiva não
conseguiu deixar de pensar em Unma, a filha do Himalaia, que era a reencarnação da sua
primeira esposa. Dia e noite suspirava por ela até que um dia se casaram. Então ela
tomou o nome de Parvati ou Filha da Montanha.
Mas o demónio do Mal continuava a fazer das suas e a destruir a Terra, para que,
quando Parvati e Xiva tivessem o primeiro filho, já fosse demasiado tarde. Não se podia
esperar tanto. Para tentar acabar com o demónio rapidamente, os deuses decidiram unir
forças e sopraram todos juntos fogo sobre Parvati, que assim se transformou na Grande
Deusa, Durga, a invulnerável, uma deusa da cor da aurora. Para poder acabar com o
demónio, Durga tinha dez braços. A Lua ofereceu-lhe a forma redonda da sua cara. A
morte ofereceu-lhe os seus longos cabelos pretos. Os deuses ofereceram-lhe armas. O
seu pai, Himalaia, o Rei das Montanhas, ofereceu-lhe um leão para que lhe servisse de
montada.
Assim apetrechada, Durga foi à procura do demónio do Mal, que apareceu sob a
forma de um búfalo enorme, acompanhado pelo seu exército. Depois de três dias e três
noites de uma encarniçada batalha, Durga bebeu um copo de licor dos deuses e espetou
o tridente no corpo do demónio. O malvado quis abandonar o seu corpo e reencarnou
num monstro com uma cimitarra. Mas Durga decapitou-o e acabou com ele para sempre.
Nesse momento, Durga transformou-se numa deusa completamente negra a quem
chamaram a partir de então Kali, a Negra.
Uma Kali de carne e osso
Da noite para o dia, aquilo que noutros tempos tinha sido um lugar de repouso
para os peregrinos transformou-se no Nirmal Hriday, Centro do Coração Imaculado, um
lugar onde acolhíamos os mendigos que encontrávamos nas ruas, os leprosos rejeitados
pelas famílias, os moribundos que não eram aceites nos hospitais… Tentávamos que os
que tinham vindo como animais pudessem morrer como anjos, sentindo-se queridos e
estimados. Era essa a nossa única intenção.
Alguns grupos de hindus não
gostaram nada de que instalássemos o
nosso lar perto do templo de Kali. Depressa
nos acusaram de tentar converter os hindus
ao cristianismo em troca de cama e comida.
Estavam bem enganados, porque o trabalho
das Irmãs da Caridade se baseava,
sobretudo, no respeito pelas crenças das
pessoas que atendiam. E posso garantir que tratávamos pessoas de todas as religiões.
Mas as tensões aumentavam. Várias vezes fomos apedrejadas e, uma vez, tentaram
até assassinar-me. Apesar de todos estes pequenos incidentes, não conseguiram
intimidar-nos. Sabíamos que tínhamos de continuar o nosso trabalho e também não
pretendíamos que este fosse compreendido por toda a gente. Tinha esperanças de que
um dia se apercebessem do erro que estavam a cometer.
E esse dia não demorou a chegar. Um grupo de manifestantes foi pedir à polícia
que nos mandasse embora. Quando o chefe da polícia entrou no Nirmal Hriday e viu com
os seus próprios olhos o amor com que lavávamos os doentes, lhes dávamos de comer e
lhes cortávamos o cabelo…, ficou profundamente impressionado. Ao sair, disse aos
manifestantes que só nos expulsaria do Nirmal Hriday quando conseguissem que as
mães, as irmãs e as esposas fizessem o que nós estávamos a fazer.
Aconteceu algo de semelhante com os sacerdotes brâmanes que cuidavam do
templo de Kali. De início opuseram-se terminantemente à nossa presença. Pensavam
que era uma profanação ao templo de Kali. Até que um dia um deles se apresentou no lar
com uma doença grave e contagiosa. Foi atendido com tanto amor e respeito que,
quando já estava curado, se dirigiu aos outros para lhes dizer «Nós prestamos culto a
uma Kali de pedra , mas esta é uma Ma-Kali real, uma Kali de carne e osso».
Os lares infantis
A tarefa era imensa. Por sorte o número de Irmãs da Caridade ia aumentando e os
colaboradores de todas as religiões e proveniências sociais eram cada vez mais. Graças a
tanta ajuda, no dia 23 de setembro de 1955 inaugurámos o Shishu Bhavan, o primeiro de
uma série de lares infantis. No início era apenas um edifício humilde onde recolhemos
um grupo de meninos abandonados. Alguns deles tinham sido encontrados no lixo ou
largados nos cais. E choravam tanto! Precisavam de comida e de um bom banho. Mas
precisavam, sobretudo, de uns braços amorosos para os acolher. Eram meninos doentes,
abandonados pelas famílias, que não podiam alimentá-los, filhos de mães solteiras, que
não eram aceites pelas famílias, ou atrasados mentais …
Quando souberam da existência do
lar infantil, muitas famílias vieram
diretamente entregar-nos os filhos e nunca
dissemos que não a nenhuma, embora não
pudéssemos satisfazer completamente as
suas necessidades e nos faltassem camas.
Se fosse necessário, metíamo-los em caixas
de cartão e aquecíamo-los com lâmpadas
elétricas.
Alguns eram devolvidos aos pais quando já estavam fortes e saudáveis. Outros
eram dados para adotar a famílias muçulmanas, hindus e cristãs… Todos os dias era
surpreendida pela capacidade de generosidade e de solidariedade das pessoas pobres.
Nunca esquecerei o momento em que um leproso se aproximou de mim para me
entregar a tigela com as esmolas que tinha reunido durante o dia. Pormenores como este
aconteciam habitualmente e davam-nos forças para nos dedicarmos ao nosso trabalho
com alegria e confiança no ser humano e esperança na vida.
Sempre me mostrei contrária ao aborto. Por isso, as irmãs e eu percorríamos
Calcutá colando cartazes que diziam que acolhíamos todas as crianças que nos
trouxessem. E todos os dias apareciam quatro ou cinco novos meninos no lar a quem
cuidar e alimentar. Como nos arranjávamos para continuar? Certamente com a ajuda de
Deus!
Não era apenas necessário tratar dos bebés. Tínhamos também meninos mais
crescidos aos quais era necessário oferecer algumas aptidões. Uma das primeiras coisas
que fiz foi comprar três máquinas de escrever para que as meninas aprendessem
dactilografia e no futuro pudessem arranjar emprego. Os que estavam em condições
eram enviados para a escola. E aos órfãos ensinávamos um ofício. Às meninas, tentava
arranjar um bom casamento, como era costume na Índia. Na cultura hindu não era nada
fácil encontrar famílias que quisessem casar os filhos com uma mulher órfã, filha de mãe
solteira ou abandonada. Apesar disso, conseguíamos e preparávamos-lhes um dote
simples composto por um sari novo, algumas bijutarias e um anel de casamento.
Bem depressa o Shishu Bhavan se revelou pequeno e tivemos de o ampliar. E
depois abrir outro lar e outro e outro… Quanto mais trabalhávamos mais tarefas ficavam
por fazer!
Não nos esquecemos dos leprosos
Para além dos moribundos e das crianças, os leprosos eram os mais desamparados
de todos. Na Índia a lepra afetava dois milhões de
pessoas. É uma doença terrível porque os que sofrem
dela são rejeitados por toda a gente. O medo de ser
contagiado pela lepra é tal que, em muitas ocasiões, os
leprosos são expulsos das famílias, despedidos do
trabalho e condenados a viverem marginalizados.
Quando alguém fica a saber que tem lepra, esconde
isso o máximo de tempo possível, o que dificulta a cura,
porque quanto mais depressa se começa a tratar a doença, maior é a possibilidade de se
conseguir curar. E o mais curioso é que nem todos os tipos de lepra são contagiosos.
Existe uma percentagem que não contagia. Mas o horror que os indianos têm a esta
doença que tantas mortes causa é muito profundo, de tal modo que alguns leprosos se
veem obrigados a anunciar a sua chegada com uma campainha para que as pessoas
saudáveis tenham tempo de se afastar. Os leprosos costumavam viver juntos, apartados
e escondidos. Isto não queria dizer que renunciassem à alegria e à diversão. Celebravam
casamentos e festas, mostrando assim vontade de viver. Sempre me chamou a atenção a
capacidade que os indianos têm de se erguerem acima das suas próprias fraquezas e
adversidades para gozarem a vida. Um indiano sorri sempre.
A certa altura, nós, as Irmãs da Caridade, tentámos fundar uma clínica para
leprosos num bairro em Calcutá. Mas o regedor local opôs-se e os habitantes da zona
apedrejaram-nos. Decidimos então ir para outro lado. E foi assim que o doutor Sen,
médico hindu especializado em lepra, abandonou o consultório para se dedicar, para o
resto da vida, a ajudar-nos com os leprosos. Como veem, o mundo está cheio de gente
maravilhosa! Fundámos com ele a primeira leprosaria móvel, numa ambulância que
recebemos dos EUA.
Depois de muitas idas e vindas e de muitas horas de espera em gabinetes,
pudemos, por fim, inaugurar o Shanti Nagar (Lugar de Paz), o nosso primeiro lar para
leprosos. Queríamos criar uma casa linda e acolhedora na qual não só oferecêssemos a
possibilidade de cura a muitos doentes de lepra como também a de recuperar a
dignidade perdida. Assim, decorámo-la com um chafariz, lagos com peixes, bananeiras,
palmeiras… Além disso, criámos várias ocupações para que as famílias de leprosos
pudessem trabalhar e sentir-se de novo parte da sociedade. Faziam tijolos, cuidavam do
gado, cultivavam arroz, fabricavam cestas, teciam saris e criaram uma oficina de
impressão tipográfica…
Uma entrevista com o imperador
Há quase dez anos que as Irmãs da Caridade estavam a trabalhar em Calcutá e
tínhamos muita vontade de começar a fundar lares por toda a Índia. O primeiro foi um
lar para crianças em Deli. Depois veio o lar para moribundos em Bombaim, a casa para
atender as vítimas do ciclone de Andhra Pradesh, as casas de Ranchi e Jansi. Mas, como
não existiam pobres apenas na Índia, depressa sentimos necessidade de fundar outros
lares fora do país. Foi assim que, em 1965, um grupo de Irmãs foi para a Venezuela a fim
de criar uma casa em Cosorote. Depois vieram outras, em Caracas, em Tabora (na
Tanzânia), em Melbourne, na Jordânia, nos arredores de Londres, em Nova Iorque, em
Hong Kong… Infelizmente, havia pobres em todos os lados e nos países mais
desenvolvidos abundava a mais terrível das pobrezas: a pobreza de espírito.
E neles deparei com a doença mais cruel de todas: a solidão. Por exemplo: quando
vivi de perto as inundações de Calcutá que tanta desolação provocaram, fiquei
surpreendida por as pessoas de Calcutá serem humanamente mais ricas do que os
habitantes de Hong Kong…
Tentávamos estar em todos os lugares onde pensávamos que precisavam de nós e,
por regra, éramos acolhidas de braços abertos. Bom, às vezes custava um pouco mais,
mas acabávamos sempre por conseguir. Na Etiópia, por exemplo, houve uma grande
seca que assolou o norte do país. Preparámo-nos para viajar até lá para aí fundar uma
casa. Mas foram muitas as pessoas que nos avisaram de que seria completamente
impossível que o imperador Hailé Selassié recebesse uma congregação cristã. E muito
menos que a deixasse ficar no país.
Como é lógico, as Irmãs da Caridade não se iriam render diante da oposição de um
senhor, por mais imperador que fosse. Assim, como não era medrosa nem preguiçosa,
tomei o primeiro avião e apresentei-me lá. Com algum esforço consegui uma entrevista
com a filha de Hailé Selassié e pedi-lhe que me deixasse ver o pai e festejar com ele o
quadragésimo terceiro aniversário da sua coroação. Levava-lhe uma prenda: as Irmãs
que ficariam na Etiópia para consolar e ajudar os seus súbditos. Perante a surpresa de
todos, o imperador não só aceitou receber-me como me felicitou pelo nosso trabalho, e
deu-me autorização para que as irmãs abrissem a casa. Como veem, não há obstáculo
que se interponha a um coração cheio de amor.
Os pobres da Lua
Naquela época, a minha vida era um constante vaivém, do avião para o comboio e
do comboio para o avião. E, entre uma viagem e outra, recebi a dolorosa notícia da morte
da minha mãe. Embora já não a visse há muitos anos, sabia que ela partilhava a minha
preocupação com os pobres e com os necessitados, e estava certa de que durante todo
este tempo tinha rezado todas as noites para que Deus ajudasse a pequena Agnes no seu
trabalho. E Deus tinha-a ouvido.
Com o tempo, as casas das Irmãs da Caridade foram-se multiplicando. Em 1979 já
existiam 158 casas espalhadas por todo o mundo. Nada disto teria sido possível sem a
ajuda de muitíssima gente que, desde o dia em que saí do Loreto com cinco rupias no
bolso e o coração cheio de entusiasmo, nunca deixaram de colaborar. Senhoras da alta
sociedade que se dirigiam aos lares para dar uma ajuda no que fosse preciso, médicos
que atendiam gratuitamente os doentes, estudantes que vinham barbear ou cortar o
cabelo aos doentes, outros que traziam as suas ofertas… Eram tantos os que queriam
colaborar em todos os cantos do mundo que foi criada uma Associação Internacional de
Colaboradores da Madre Teresa.
Animadas com o apoio de tanta gente boa, estávamos dispostas a ir para todos os
lugares da Terra onde houvesse pobres. E se pobres existissem na Lua, também lá
iríamos.
Chovem prémios
E começaram a chegar-me prémios de todos os lados. Recebi o Prémio Magsaysay
pelo entendimento internacional, O Lótus que Difunde a Luz, o Prémio da Paz do Papa
João XXIII, o Prémio Neru pelo bom entendimento internacional, as Medalhas Ceres da
FAO, a Medalha do Ano Internacional da Mulher, etc. Recebi todos eles com grande
humildade.
Mas o prémio mais importante de
todos, o que me fez sentir mais
orgulhosa e honrada, foi o Prémio Nobel
da Paz, que me concederam em outubro
do ano de 1979. No dia 8 de Dezembro,
as Irmãs Agnes, Gertrude e eu aterrámos
em Oslo. Como se assustaram as pessoas
que estavam à nossa espera para nos
receber ao ver-nos descer do avião com os nossos saris de algodão e as nossas sandálias,
a uma temperatura de oito graus abaixo de zero! Estavam tão preocupados connosco
que se esforçaram por nos arranjar agasalhos de pele e botas forradas. Mas, por muito
que insistissem, apenas conseguiram que calçássemos umas meias por dentro das
sandálias.
Na Aula Magna da Universidade de Oslo, quando me iam entregar o Prémio, rezei
em voz alta a oração da paz de S. Francisco «Senhor, fazei de mim um instrumento da
Vossa paz. Onde houver ódio que eu leve o amor…». Todo o público presente, constituído
por católicos romanos, luteranos, anglicanos, ortodoxos, gregos, batistas, metodistas …
se uniu a mim na oração. Todos unidos pela paz.
Foi um momento comovente. Depois da entrega do prémio, que recebi em nome de
todos os pobres do mundo, não houve banquete. Preferi que o dinheiro que iria ser gasto
nele se destinasse aos que não tinham que comer.
Os meus últimos anos
Em 1981 diagnosticaram-me uma doença do coração. Desde então foram muitas as
ocasiões em que desobedeci aos médicos, que queriam que eu fizesse repouso. Como
queriam que eu ficasse quieta numa cama com tanto por fazer? Contra qualquer
prognóstico, o meu coração aguentou muito mais do que todos esperavam. Talvez o
amor e o trabalho o tivessem fortalecido.
Em 1989 instalaram-me um pacemaker. No entanto, continuei com as minhas
tarefas, entre as idas e as vindas do hospital, durante mais oito anos. Até que, no dia 5 de
setembro de 1997, o meu coração disse chega! Morri como tinha vivido, a trabalhar para
os pobres, a quem dediquei a minha vida e que tanto me tinham dado.
O meu corpo foi passeado pelas ruas de Calcutá
na mesma carreta que transportara Gandhi, a quem
tanto admirava. Milhares e milhares de indianos
acompanharam-me. Fui tranquila e em paz. Deixava
atrás de mim 380 comunidades espalhadas por todo
o mundo, milhares de Irmãs da Caridade e centenas
de Irmãos que continuariam o trabalho que eu
humildemente começara.
Além disso, ia-me embora, convencida de que o
mundo estava cheio de pessoas dispostas a lutar para
o transformar num lugar mais justo.
Chamo-me Teresa de Calcutá
Lisboa, Didáctica Editora, S.A, 2006
(Adaptação)