De súbito, senti uma grande tristeza. Sobre mim pesava um céu imenso aparentemente pétreo e sufocante, sem lua ou estrelas, apenas com ténues resplendores.
Quanto me era dado observar, encontrava-me numa planície vazia e infindável, talvez num deserto de pedra. Três questões ocupavam o meu espírito. Primeira: como fora eu chamada a participar naquela história e a ditar o seu desfecho? Segunda: como fora eu ali parar? Terceira: afinal que fazia eu ali, naquela realidade adormecida, e que haveria eu de fazer para dali sair?
Intrigada, olhei à minha volta. Os meus movimentos pareciam congelados, todos os meus movimentos, dos braços, dedos, cabeça, pés. Reparei que o suor, um suor de medo, me cobria o rosto e todo o corpo. Apesar de ser noite, o calor era escaldante, eu transpirava, mas curiosamente os meus movimentos estavam congelados. Uma nuvem azulada com reflexos de prata pendeu sobre mim e envolveu-me por todos os lados, como uma imensa teia de aranha de fios finíssimos. A teia alastrou em meu redor, emitindo uma luz fria e crepuscular que me enredava os pensamentos.
De súbito, os meus movimentos tornaram-se extremamente ágeis, o meu corpo imponderável e imaterial. Eu sentia que podia ir onde quisesse, galgar o fio do horizonte, passar o deserto de pedra, a planície vazia e infindável…
Suspensa nos fios da teia que me envolvia, soltei-me e deixei-me ir. As imagens sucediam-se a uma velocidade espantosa, eu seguia o seu rasto mas o rasto desaparecia de repente e, por mais que me esforçasse, não conseguia descobri-lo. Contemplava eu com pasmo o que me rodeava, quando uma bela mariposa me poisou na mão.
Sacudi a mão, ela esvoaçou por entre uma chuva de luzes multicores e depois roçou-me ao de leve a orelha. A borboleta segredou-me qualquer coisa que me fez sorrir, qualquer coisa como:
Eu estou próxima de ti, mas tu de mim afastada…
Ela repetiu uma e outra vez alguns dizeres, dizeres que sugeriam que eu me encontrava perdida no nevoeiro e que me seria custoso encontrar o caminho.
— Eu vim em teu auxílio, mas a verdade é que também não sei o caminho. O caminho não se ensina. Vai‑se fazendo…
Ali onde agora estávamos, naquele lugar ideal, sem fronteiras, fora do tempo, estavam todos os sonhos das pessoas, os já sonhados e os ainda por sonhar, as figuras das histórias, dos mitos, das lendas, das fábulas. Todas as criaturas do Sonho e da Fantasia habitavam aquele Reino.
Ali existiam todos os seres da magia, todos.
Ela era a borboleta Mariposa, uma borboleta pairante, nascida da imaginação de uma menina durante a leitura de um poema.
— Como se chega àquele lugar? — perguntei-me.
— Como se chega? — pergunto-me.
— Alcança-se este lugar depois de se atravessar uma fronteira invisível, como a que há entre o dia e a noite. Não te digo como atravessar, tens de descobrir por ti…
— Quem conseguir passar a tal fronteira — continuava a Mariposa indiferente às minhas cismas — guardará essa recordação para a vida inteira e, mais importante do que tudo, receberá dons excecionais.
— Dons excecionais?
— O Reino do Sonho torna as pessoas especiais. Aqueles que lograrem o Reino do Sonho… guardarão os rostos de antes e depois. E jamais perdem a infância…!
Quis perguntar à Mariposa que dons excecionais receberia eu no Reino do Sonho, se para isso teria que formular alguns desejos e se havia limite para o número de desejos a formular. Mas ela desapareceu saltitando nas nuvens e deixando-me numa grande ansiedade.
Por ali estar, eu transformara-me em alguém especial? E que significaria isso?
Fiquei por muito tempo a contemplar a sua imagem ausente. Na aragem julguei escutar o estribilho: o sonho é uma arma…
Procurei a Mariposa por muito tempo até que acabei por suspender a busca.
Natália Bebiano
No Reino do Sonho
Lisboa, Editorial Presença, 2000