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Blog do Vavá da Luz

CLUBE DA HISTORIA EM : A velha sem-abrigo

A velha sem-abrigo


Com uma mão enluvada, Lola Meece arrancou a erva
daninha de entre os junquilhos e colocou-a,
cuidadosamente, junto das que jaziam perto de si. Depois,
ajustou o chapéu de aba larga que protegia a sua pele
delicada do sol da manhã. Enquanto afastava uma madeixa
do cabelo ruivo, detetou um movimento no passeio por
detrás da sebe. Pôs-se de pé e viu que aquela mulher
horrível a fixava de novo.
Tinha-a visto pela primeira vez no sábado, quando levara Fifi a passear. Mal reparara
que a mulher as fixava, Lola tinha arrastado a cadelinha para fora do parque. Contudo, como
se não bastasse que uma mulher tão andrajosa e de tão má reputação andasse livremente
por um parque frequentado por pessoas respeitáveis, Lola ainda tinha de a aturar a
observá-la por cima da sebe da sua própria casa.
— Esta mulher é uma vergonha para a vizinhança — murmurou Lola para si mesma.
— O Al e eu já contribuímos para associações que lidam com estes problemas; não tenciono
aturá-los na minha própria rua!
Lola sabia que a mulher devia ser mandada embora, mas, como não queria ter
qualquer contacto pessoal com a “criatura”, entrou em casa à procura de um dos criados.
Assistiu à confrontação entre a sua governanta e a sem-abrigo da janela. Viu como
esta, embora magra e curvada, não cedia à intimidação. Fixando a janela de onde Lola a
observava, a mulher entrou no jardim, foi até ao canteiro, e partiu a haste de um junquilho.
Lola saiu de casa, enfurecida.
— Saia imediatamente — ordenou à mulher. — Como se atreve a invadir a minha
propriedade?
A mulher olhou-a calmamente e disse:
— Eu só queria uma flor. As flores são de todos, lá no lugar de onde eu venho.
— Então, volte para donde veio — exigiu Lola. — O seu lugar não é aqui.
Sem dizer palavra, a velha senhora caminhou até junto da sebe.
Em seguida, virou-se para trás e disse:
— É estranho como a nossa vida pode dar tantas voltas até nos colocar no sítio exato
onde pertencemos. Nenhuma de nós acabou ainda de dar essas voltas.
Lola tremia, à medida que via a mulher afastar-se, sem saber se as tremuras se deviam
à raiva ou ao medo, já que as palavras da mulher a tinham arrepiado.
Deu-se conta de que a governanta insistia para que entrasse em casa e se fosse
preparar para o almoço. Seguiu-a e tentou esquecer o incidente.
Duas horas mais tarde, rodeada de amigas, e sentada numa mesa do relvado magnífico
que ficava junto do lago, Lola partilhou a experiência desagradável que tivera. Todas
concordaram que a situação das pessoas sem-abrigo era, de facto, infeliz, mas todas
achavam, também, que as pessoas deviam controlar as suas próprias vidas. De certeza que
essas pessoas tinham perdido o controlo das suas vidas, devido a um erro cometido por elas
mesmas.
Depois de as suas convidadas partirem, Lola sentiu-se melhor. Desceu até junto do
lago e sentou-se a dar de comer aos cisnes, enquanto observava o seu reflexo na água. Os
junquilhos da margem deslumbravam-na com a sua beleza.
Faziam-lhe lembrar a forma como Al, o marido, brincava com ela. Sempre que passava
algum tempo em casa, entre as suas intermináveis viagens de negócios, o marido chamavalhe
“meu pequeno junquilho”, porque os junquilhos são uma espécie de narcisos. Dizia-lhe
que a queria sempre bonita para ele, e que não queria vê-la cansar a sua bela cabecinha com
negócios. Tinha-lhe mesmo comprado um livro de mitologia grega, que falava da lenda de
Narciso.
Lola adorava a história do belo jovem que tinha recusado o amor da ninfa Eco e que
Afrodite punira, ao fazê-lo apaixonar-se pela sua própria imagem. Lola compreendia o pesar
de Narciso, condenado a olhar para o seu reflexo num lago, e regozijava-se com o facto de os
deuses se terem apiedado dele, e o terem transformado numa bela flor, que reclinava a
cabeça sobre a água.
Acreditava que o marido a acharia sempre bonita e que poderia sempre contar com
ele para tomar conta dela. Hoje mesmo, quando ele chegasse, ririam ambos da presunçosa
sem-abrigo. Enquanto Lola se afastava do lago, a superfície da água agitou-se e pareceu-lhe,
por instantes, ver o rosto da velha sem-abrigo em vez do seu. Pestanejou e o reflexo
desapareceu.
Quando se estava a vestir para jantar, pareceu-lhe sentir a presença de alguém no
quarto, o que a fez olhar várias vezes para os espelhos em seu redor. Mas apenas viu a sua
silhueta elegante. Às oito horas, Lola jantou sozinha. Al nem sempre chegava a horas, devido
a atrasos no aeroporto. Por volta das nove, começou a ficar ansiosa. Às dez, agarrou no
telefone mal este tocou.
Os dias que se seguiram pareceram-lhe envoltos em nevoeiro. A notícia da queda do
avião era ainda recente quando começaram os telefonemas de jornalistas e de pessoas que
queriam ora comungar da sua dor, ora saber detalhes mórbidos do acidente. Seguiu-se o
funeral e o encontro devastador com os advogados.
Não podia ser verdade o que estava a acontecer-lhe. Lola sempre tinha controlado
tudo na sua vida. Al não podia estar morto nem podia tê-la deixado sem um cêntimo. O
advogado disse que o marido tinha dívidas de jogo e que ela teria de deixar a casa num
prazo de trinta dias, para a moradia poder ser vendida. Lola continuava a achar que tudo
não passava de um horrível engano.
Depois de os criados terem ido embora, porque ela já não podia pagar-lhes, Lola
começou a vaguear pela casa. Sabia que tinha de fazer planos e de assumir o controlo da
situação, mas sentia-se incapaz de o fazer. Os amigos que costumavam encher a casa nos
almoços e nas festas deixaram de telefonar ou de aparecer. As chamadas de Lola nunca
foram devolvidas. Viu duas vezes a velha sem-abrigo a passar pela casa e a apanhar
junquilhos, mas nem sequer reagiu.
Todas as manhãs, Lola olhava-se ao espelho, sem reconhecer a estranha que a fitava.
Via cada vez mais rugas e menos quilos. No fim do mês, sentiu que algo de muito errado se
passava, mas não sabia o que havia de fazer. Foi então que o advogado telefonou a dizer que
a casa tinha de ficar vazia nessa tarde. Lola não tinha para onde ir, mas isso não preocupava
ninguém a não ser ela mesma.
Quando estava a meter algumas coisas no saco, reparou numa camisa de Al no chão do
armário. Pegou nela e espreitou dentro do bolso, como sempre fizera, e como se a sua vida
não tivesse mudado. Tirou um pedaço de papel e viu, surpreendida, que era um bilhete de
lotaria. Lola desconhecia que Al jogava na lotaria.
De repente, sentiu-se zangada. Como poderia o marido ter esbanjado o dinheiro deles
em coisas como esta? Enfiou o bilhete no bolso, juntamente com as luvas de jardinagem. A
raiva deixara-a a tremer.
Fechou a porta de casa pela última vez e as suas pernas fraquejaram enquanto
atravessava o relvado. A relva crescera junto do canteiro e Lola sentou-se a descansar.
Olhou para os belos junquilhos que começavam a fanar, abafados por inúmeras ervas
daninhas. Tirou as luvas do bolso para proteger as mãos e nem viu o bilhete de lotaria
esvoaçar. O vento gemia e dobrava os junquilhos, ao mesmo tempo que varria o espaço
vazio. O bilhete de lotaria voou sobre a sebe.
A velha sem-abrigo pegou nele e foi a correr verificar os números.
Para lá da sebe, a vida deu voltas e mais voltas, e os junquilhos murchos dobraram-se
ainda mais ao longo do lago.


Roberta Simpson Brown
The Walking Trees and Other Scary Stories
Little Rock, August House, Inc., 1991
(Tradução e adaptação)