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Blog do Vavá da Luz

CLUBE DA HISTORIA EM : A semente dos desejos

A semente dos desejos


Tudo estava a correr mal.
No próprio dia em que deixei as muletas por causa de um ferimento num joelho, o meu filho
adolescente chegou do acampamento, também de muletas, com um ferimento no joelho. Estava em
sofrimento e necessitava de uma cirurgia. E não tínhamos qualquer seguro.
Na semana anterior, fora-nos dito que o nosso novo carro, do qual precisávamos desesperadamente,
não tinha reparação possível. Portanto, devolvi-o e, embora contra vontade, tive que adquirir um modelo
maior. No regresso a casa, depois do negócio, uma pedra projetada pelas rodas estilhaçou o para-brisas. O
correio daquele dia trouxe uma animadora carta do IRS dizendo-me que devia quase vinte mil dólares de
mais-valias de uma casa que eu e o meu ex-marido tínhamos vendido dois anos antes. Nessa altura, estava
eu a ensinar em casa os quatro filhos mais novos, mal sobrevivendo com os honorários da minha atividade
como escritora independente, e folheando de fio a pavio a papelada do promotor de justiça para poder
obter assistência para as crianças.
O mundo estava a desmoronar-se debaixo dos meus pés, numa série de pequenas avalanches. Não
levou muito tempo até conseguir visualizar o IRS a tirar-nos a nossa atual casa, deixando desalojadas cinco
crianças e eu própria. E o nosso carro seria demasiado pequeno para lá vivermos todos! Talvez pudéssemos
comprar uma pequena caravana. E os quatro gatos e os dois cães? Iria ter que dizer aos meus filhos que
procurassem outra casa para os seus animais de estimação?
Pusemos imediatamente a casa à venda. Talvez se vendesse rapidamente. Em desespero, comecei a
colocar anúncios para tudo o que tínhamos de valor. A mobília, o frigorífico, a estufa e a minha aliança de
casamento venderam-se bem. Depois começámos a fazer visitas regulares ao camião local da Legião da Boa
Vontade, para deixar tudo aquilo que não nos fazia falta. E fomos à procura de caixotes… Entretanto,
visitávamos consultórios de cirurgiões ortopédicos e farmácias, e víamos as caretas de dor do Robin a cada
movimento que fazia.
As nossas vidas tornaram-se uma horrível sequência de escolher, empacotar, limpar. Passávamos o
tempo a pedir para que o agente imobiliário fizesse rapidamente um milagre. À medida que os
aborrecimentos do costume se acumulavam, notei, com algum complexo de culpa, que estava a ficar cada
vez mais amarga, tensa e rude com os meus filhos. Infelizmente, a culpa só vinha aumentar as minhas
frustrações e passava períodos cada vez mais longos escondida no duche, a chorar.
Um dia, durante uma breve pausa no parque, Larkin, o meu filho mais novo, veio a saltitar até junto
de mim, trazendo-me uma semente dos desejos, a suave e felpuda semente de cardo a que as crianças
pedem um desejo, soprando-lhe em seguida. De acordo com o mito, se a semente viajar uma boa distância
(não se sabe exatamente que distância é essa), o desejo tornar-se-á realidade. Com pouca convicção, peguei
na semente e rezei em silêncio, pedindo serenidade, paciência e orientação, e para ser uma mãe melhor e
lidar com as coisas com mais tranquilidade. E sorrindo para a cara ansiosa de Larkin, deixei a semente seguir
o seu caminho.
Os dias seguintes, passámo-los a etiquetar, encaixotar e a desfazer-nos dos restantes pertences da
nossa vida. A tristeza pairava por toda a casa, ameaçando engolir o que restava de nós. Até este momento,
não havia comprador à vista, e o IRS enviou uma intimação mais severa. O meu filho precisava de ser
operado e sentia-se consternado pela sua incapacidade de ajudar em tudo o que exigisse movimento.
Estava sob efeito de analgésicos e passava a maior parte do dia a dormir. Entretanto, o consultório do
médico debatia-se com a companhia de seguros do acampamento para obter autorização para a cirurgia.
Uma tarde, levei os quatro mais novos até à pista de patinagem para descomprimir um pouco e
manter uma atmosfera de normalidade nas nossas vidas. Enquanto patinava, sempre em volta do recinto,
a rotina habitual não me deixava acalmar. Os pormenores de tudo o que precisava de ser tratado rodavamme
na cabeça sem piedade. Para meu embaraço, as lágrimas queimavam-me os olhos, ameaçando
transbordar. O medo, o cansaço, o sentir-me esmagada pela dor e o impiedoso calor do verão dominavamme.
O ar condicionado do recinto de patinagem estava avariado nesse dia e o proprietário ultrapassou-me
de patins, abrindo para trás as portas das traseiras para permitir que a brisa entrasse antes que todos nós
derretêssemos. Uma onda de ar morno passou rápida por mim, e então eu vi-a. Flutuando mesmo direta a
mim vinha uma semente dos desejos. Que se acomodou, tremelicando, na mão que eu estendi.
Apoderou-se de mim um sentimento espantoso e absurdo. Mas o que era isto? Também Deus estava
a rejeitar o meu desejo? Teria Ele finalmente ficado saturado de todas as minhas dores e queixas? Comecei
a dar risadinhas. Ondas de gargalhadas fizeram sair as lágrimas e empurraram-nas, derramando-as pela
minha cara abaixo. Continuei a patinar, agarrando a semente dos desejos entre dois dedos, com as lágrimas
a correr pela cara abaixo e a rir. Via-se bem, pela cara dos meus filhos, que deviam pensar que eu tinha
enlouquecido.
A dada altura, os risos pararam e foram substituídos por uma sensação de total tranquilidade. Aquela
sensação de serenidade permaneceu quando deixámos a pista de patinagem, e prolongou-se durante dias.
Pela primeira vez desde que a vida tinha começado a desmoronar-se, senti-me capaz de lidar com as coisas
sem aquela constante e recorrente sensação de pânico. Claro, nenhum dos nossos problemas desapareceu
por magia. No entanto, as coisas começaram calmamente a retomar o seu lugar.
A cirurgia do meu filho foi coberta pela companhia de seguros do acampamento e realizou-se com
sucesso. O Promotor de Justiça conseguiu recuperar o ano em atraso que o pai dos meus filhos devia de
pensão, o que me permitiu pagar a hipoteca e enviar ao IRS o primeiro de muitos pagamentos. A minha
irmã pagou-me um empréstimo já antigo. Chegaram dois cheques relativos a artigos que eu tinha vendido
alguns meses antes. E assim foi sucedendo. Quanto mais eu deixava de andar obcecada, mais
tranquilamente os acontecimentos se sucediam.
Hoje, na minha secretária, tenho um bocado de papel branco emoldurado, ao qual está presa uma
simples semente dos desejos. Àqueles que perguntam, apenas digo que foi a primeira vez que Deus me
mandou um recibo comprovativo de uma oração.
Lizanne Southgate