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CLUBE DA HISTORIA EM : A menina que voltou a sorrir

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Outrora, todos gostavam de viver em Guardavida. O
clima, a geografia pitoresca e a boa disposição dos habitantes
atraíam sempre muitos viajantes provenientes de outros
países. Mas, não se sabe bem porquê – talvez por inveja –
Guardavida conheceu em poucos meses uma das piores
catástrofes que um país pode sofrer: os homens tornaram-se
inimigos uns dos outros!
No início, o pequeno reino de Guardavida foi saqueado
e destruído por duas potências rivais, que o disputaram entre
si. Em seguida, conheceu uma terrível guerra civil, que acabou
por arruinar tudo o que restara do conflito anterior. Depois do ódio e da miséria terem
cumprido o seu papel, os habitantes mergulharam num profundo desespero. O rei perdera
entretanto a esposa e três filhos nos conflitos, e tinha decretado luto nacional por tempo
indeterminado.
Quem quereria agora visitar as cidades arrasadas, os campos devastados e as estâncias
balneares destruídas? Quem poderia rir ou divertir-se com uma população de refugiados,
desencantados e resignados, que tinha até esquecido que a felicidade existia?

Acontece que, uma noite, a sentinela encarregada de vigiar as praias orientais de
Guardavida se apercebeu de algo estranho no declive de uma duna. De arma na mão
aproximou-se, sem fazer barulho, e ficou estupefacta com o que viu.
Deitado na cratera que uma bomba deixara na areia, estava um menino vestido de
farrapos. O soldado rastejou até ao local e viu, apesar da escuridão, que a criança estava viva. De
mãos atrás da nuca, com os joelhos fletidos, ela sorria ao contemplar o enorme céu escuro, no
qual despontavam um crescente de lua e as primeiras estrelas.

O guarda observou a cara do rapaz durante um longo minuto e, depois, com a rapidez de
um relâmpago, saltou para junto dele, apontando-lhe a arma. ― Alto lá! ― gritou a sombra debruçada sobre a criança que, entretanto, se pusera de
joelhos, com o coração a bater forte. ― Alto lá! ― gritou de novo o soldado, como se o menino
fosse fugir. ― Põe-te de pé, seu malandro! Há mais de um minuto que te vejo a sorrir!
― Eu… eu não estava a fazer nada de mal ― balbuciou a criança.
― Toca a andar! Não passas de um pequeno verme sorridente! ― gritou o soldado,
batendo-lhe com o bastão nas costas.
― Não… não sou um inimigo, não sou um estrangeiro ― tentava explicar a criança, que
caminhava agora rapidamente, com as mãos no ar.
― De Guardavida não és, porque sorris de noite, às escondidas. És um malandro que não
respeita o nosso luto nacional, um foragido que troça da nossa mágoa e dos nossos mortos!
― Mas… mas… eu estava a sorrir sem me dar conta ― dizia o menino, já sem fôlego. ―
Sorria por causa do primeiro crescente de lua: os meus lábios imitavam a sua forma. Sorria
porque a areia está morna e a noite é tão amena…
― Como? Morreram milhares de Guardavianos nestas praias, a defender a sua pátria.
Estas dunas, crivadas de bombas, de balas e de granadas, ficaram juncadas de cadáveres!
E o soldado bateu com força na cabeça do menino, que caiu por terra. Mas em breve se
levantava, segurando um punhado de areia na mão.
― Veja, veja como esta areia é morna e macia e…
Quando o soldado se preparava para bater de novo na criança, esta atirou-lhe a areia aos
olhos e desatou a fugir.
O rapaz correu pela noite dentro até ao alvorecer. Embora estivesse há muito fora do
alcance do soldado, sentia-se inquieto. Resolveu então
refugiar-se durante o dia numa pequena floresta de
bétulas prateadas, e voltar à estrada ao anoitecer.
Guiado pelo murmúrio da água que deslizava sobre
os seixos, começou a avançar pela floresta dentro. Acabou
por se sentar na margem de um pequeno riacho que se
divertia a serpentear por entre os salgueiros. A luz
daquela manhã de abril penetrava através das folhas cor
de amêndoa e fazia brilhar os troncos das bétulas. Milhares de estrelas reluziam na superfície da
água.
A criança que, em silêncio, desfrutava do espetáculo sempre novo da água, do ar e da luz,
maravilhou-se com o aparecimento fulgurante de um guarda-rios. Era como se quatro anos de
guerra tivessem poupado este pequeno paraíso no coração de Guardavida. Como se as
andorinhas, os tentilhões e os chapins que chilreavam e saltitavam nunca tivessem ouvido o
troar dos canhões, o zunir das balas, o estertor dos moribundos e as queixas dos sobreviventes. Aqui, a água que brotava de uma nascente pura e corria sobre os seixos, continuava a ignorar a
cor do sangue. Exausto, o rapaz deitou-se no musgo e acabou por adormecer, embalado pelo
canto dos pássaros. E, enquanto dormia, sorria para os anjos do céu azul…

Desta vez, não foi uma sentinela mas uma patrulha inteira que o acordou, em sobressalto.
Através do sol ofuscante do meio-dia, a criança conseguiu distinguir seis rostos ameaçadores
debruçados sobre ela. Momentos depois, de mãos atadas e boca amordaçada, foi conduzida à
cidade mais próxima e atirada para um calabouço sombrio.
Passaram-se dois dias e duas noites intermináveis, durante os quais, cheia de fome e com o
corpo pisado, só não sucumbiu ao desespero porque pôde respirar o cheiro de uma glicínia que
se estendia pela parede exterior da prisão.

Na manhã do terceiro dia de prisão trouxeram-lhe finalmente um pouco de pão e água, e
fizeram-na comparecer, em seguida, perante os juízes.
Numa sala enorme, com paredes de pedra, três homens com vestes compridas debruadas
a arminho branco estavam diante dele, enquanto uma multidão cinzenta e agitada murmurava
nas suas costas.
― Estrangeiro! ― começou um dos
juízes. ― És acusado de teres entrado
ilicitamente no nosso país, de teres
agredido um dos guardas fronteiriços e,
sobretudo, de teres desrespeitado, por duas vezes, o luto nacional decretado pelo nosso
soberano, mostrando assim o teu desprezo pela dor e mágoa dos nossos concidadãos. És uma
ameaça à paz do reino e incorres na pena capital, reservada aos traidores da pátria. Reconheces
todos estes factos?
― Mas ― respondeu a criança ― eu nasci em Guardavida, há dez anos, mais ou menos,
e…
― Admito que pareces conhecer a nossa língua ― interrompeu o segundo juiz, sentado à
direita do primeiro ― mas quem pode provar que és um Guardaviano, se não encontrámos
nenhum documento de identificação na tua roupa esfarrapada?
― Tudo me foi roubado há dias, enquanto dormia ao relento. Os meus pais deviam ter o
que procurais, mas foram mortos num bombardeamento há três meses.
― Mentes! ― interrompeu secamente o terceiro juiz. ― Se os teus pais tivessem morrido
num bombardeamento, não sorririas durante o sono.
A multidão soltou uma exclamação de espanto.
― Mas eu senti uma grande dor quando os meus pais foram mortos, e continuo a sentir uma pena imensa. Às vezes, choro sozinho, com o estômago contraído, e cerro os punhos para
não gritar…
― Quando tentaram prender-te na costa oriental, a
sentinela assegurou que sorrias sozinho e que troçavas da
morte recente dos teus pais!
― É que, quando penso nos passeios que dei com o
meu pai, quando me lembro das suas brincadeiras, quando
revejo os olhos da minha mãe e me dou conta do tesouro
que eram os beijos que me dava antes de dormir, o meu rosto ilumina-se de felicidade!
― Não negas, então, que és incapaz de respeitar o nosso luto. Seis testemunhas
ajuramentadas viram-te sorrir para os anjos, no dia a seguir ao teu primeiro delito!
― Estava contente ― disse a criança ― por ouvir os pássaros cantar e o rio murmurar por
entre os seixos. A descoberta dos primeiros lírios de água, o perfume de uma flor selvagem,
tudo alegra o meu coração… Às vezes, esqueço-me da minha tristeza quando vejo o sol brilhar
na água ou brincar com as nuvens. Gosto de ver o vento acariciar as ervas ou dançar nos ramos
dos salgueiros…
Um longo murmúrio elevava-se agora da multidão, como se as suas palavras tivessem
despertado nas pessoas surpresa, consternação e cólera.
― Basta! ― disse o primeiro juiz, batendo com o martelo na secretária. ― Esta criança
clandestina que reconhece os seus crimes perturba a ordem pública! Condenamo-la à forca,
como fazemos a todos os traidores de Guardavida!
Segundo os costumes de Guardavida, os condenados à morte eram conduzidos diante do
soberano, na véspera da execução, a fim de poderem beneficiar de um perdão real. Mas o rei,
desde que perdera a família, nunca mais tinha acordado perdão algum. Era como se a dor
tivesse destruído toda a compaixão. Se ainda aceitava participar nesta cerimónia, era mais para
respeitar um costume instituído do que para salvar a vida de algum miserável.
De facto, quando se dignava olhar para alguns dos condenados, via sobretudo neles os
assassinos da sua família e, caso pudesse, em vez de lhes conceder perdão, ele mesmo lhes
cortaria o pescoço. Foi pois com uma esperança assaz diminuta que o rapaz foi conduzido diante
dele, acompanhado por uma dúzia de prisioneiros.

Sentado numa grande sala do palácio, no trono de ébano, o rei estava absorto nos seus
pensamentos sombrios. A sua única filha ainda viva estava sentada a seu lado e acariciava os
cabelos dourados de uma boneca de porcelana. Quando os condenados entraram e foram
conduzidos até ele, o monarca levantou os olhos, e o seu rosto imóvel foi-os olhando, um a um,
sem trair a menor emoção. Olhava-os sem os ver. Porém, quando os olhos do rei pousaram no rapaz, o seu corpo ficou hirto, soltou um grito de
cólera e foi tomado de um furor terrível.
― Insolente! Traidor! Anarquista! Como ousas,
diante de mim, desprezar as minhas leis, violar o
nosso luto e profanar a memória da minha própria
família?
― Perdoai-me, Senhor, perdoai-me. Não queria ofender-vos nem faltar-vos ao respeito,
mas a vossa filha…
— Como te atreves? ― espumava o rei.
— A vossa filha tem um ar e uns olhos tão tristes que não pude conter-me: sorri-lhe
quando os nossos olhares se cruzaram… É mais forte do que eu, vem-me do mais profundo da
alma e…
Mas o rei deixara de o ouvir. Observava, maravilhado, a filha, o seu único descendente
vivo, a sua única consolação, a sorrir… A filha sorria para o menino que ia morrer…. Durante
muito tempo todos, guardas, senhores e condenados, ficaram suspensos da reação do rei. E foi
então que todos assistiram a um autêntico milagre! Desarmado, estupefacto e hipnotizado, o
monarca não conseguia desviar o olhar do rosto da filha. Pouco a pouco, os seus lábios
começaram a tremer e uma lágrima deslizou do seu olho direito e azul. Por fim, sorriu,
emocionado, para a princesa.
Um murmúrio percorreu a assembleia. Uma alegria silenciosa tomou o lugar do mais
profundo desespero. Um sorriso partilhado e tranquilo emergiu da dor e das mágoas e
contagiou todos quantos estavam presentes na sala.

EPÍLOGO

O fim do luto nacional foi decretado naquela mesma noite; os treze condenados à morte,
entre os quais a criança, foram agraciados e soltos.
A história não diz o que aconteceu ao rei, à princesa e ao menino.
Sabe-se apenas que Guardavida se tornou de novo um país hospitaleiro e
acolhedor, onde dá gosto viver. Sabe-se também que não há dor nem
desgosto tão intensos e violentos que não possam vir a ser consolados, que
não possam ser redimidos pela vida sempre nova e apaixonante que nos espera.

Jean-Hugues Malineau
L’enfant qui retrouva le sourire
Paris, Albin Michel Jeunesse, 1999
(Tradução e adaptação)