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Blog do Vavá da Luz

CLUBE DA HISTORIA EM : A lembrança

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Se eu vos disser que Maria era para mim um poema eu não exagero. Um poema muito belo. Todas as crianças, aliás, são poemas para nós, os adultos. Poemas que nos dizem que a Vida tem Sol, Amor, Alegria, flores, água que corre nos rios, que se levanta nos mares em ondas vigorosas. E neve, e chuva, aqueles dias em que, por detrás dos vidros, parece vermos o tempo correr.

Maria era tudo isso para mim. Os seus olhos muito castanhos, muito brilhantes, quando me olhavam, levavam-me para muito longe. Um país que vocês talvez não conheçam porque estão dentro dele ainda: o País da Infância.

 

E, então, íamos num barco à vela. Ou íamos pelo ar: num avião brilhando ao sol, nas asas finíssimas do vento, ou até sozinhas como se nós próprias tivéssemos asas.

E víamos terras maravilhosas.
— Queres uma flor?
— Quero, Maria.

A mãozinha, muito gorda e com pequeninas covas, de Maria, estendia-me uma flor. Na sua mãozinha a flor era sol, água de um repuxo que se erguia para o ar e cantava.

— Obrigada, Maria!

E Maria ria, feliz por me ter dado uma flor. Eu tão feliz por a ter recebido. Maria começava, pequenina, a aprender a alegria de dar.

E as suas gargalhadas (ria por tudo, Maria!) tinham música paramim. Quando a encontrava no passeio que ia ter à escola (porque eu encontrava-a no caminho para a escola) já Maria era uma espécie de concerto maravilhoso.

— Bom dia! Bom dia!

O bibe branco, a pasta dos livros, o cabelinho ao vento. E os pés pequeninos, dentro dos sapatos brilhantes, a caminharem sobre o passeio. Punha-se em bicos de pés para me beijar. O beijo de Maria, tão amigo, tão meigo!

E eu tinha a ideia de que dezenas de pássaros azuis se desprendiam dos meus cabelos. Que voava para o tal país. O da Infância.

 

Um dia Maria não passou mais por aquele passeio.

Partira com os pais para outra terra.
Nós temos de nos habituar à ausência.

Substituindo Maria viria outra Maria, viriam outras crianças. Temos de nos habituar a guardar no nosso coração lembranças belas. Para mim, naquele passeio, ficou sempre a figura de Maria, a passar. Sorrindo.

E Maria, longe há de crescer. Daqui a pouco será uma mulher. Talvez se lembre de mim, da minha alegria ao encontrá-la. Dos seus próprios risos. Aquela música!

E, talvez, em pensamento, me traga uma flor. Muito bela também: que se chama lembrança, amizade.

E nem é preciso de novo nos encontrarmos sobre o passeio.

De longe sorrimos, recebemos uma flor.
 

Matilde Rosa Araújo

O Sol e o Menino dos Pés Frios

Lisboa, Livros Horizonte Lda., 2001