A CARROÇA
Sempre que penso no meu pai, recordo-me de que nos lembrava constantemente que fossemos gentis uns com os outros. Para ele, a delicadeza era a coisa mais importante da vida e ficava magoado quando via certas pessoas intrometerem-se numa conversa, interrompendo quem estava a falar.
O meu pai tinha uma forma muito especial de mostrar que estava descontente. Sei-o bem, pois cometi muitas vezes esse erro e ele nunca me repreendeu diretamente. Eis a forma como me demonstrou a minha indelicadeza.
Certa manhã, bem cedo, convidou-me para ir até ao bosque ouvir os pássaros cantar. Aceitei e partimos felizes. Seguimos por uma vereda, sentindo a erva ainda húmida do orvalho. A dada altura, o meu pai parou e eu também. O silêncio do acordar dos pássaros na floresta pairava ao nosso redor e um chilrear de luz começava a aparecer no céu rosado.
Algum tempo depois, o meu pai perguntou-me:
— Consegues ouvir algo para além do canto dos pássaros?
Apurei os ouvidos durante alguns segundos e respondi:
— Estou a ouvir o barulho de uma carroça que vem pela estrada.
— Exatamente — confirmou o meu pai. — É uma carroça vazia…
Como do sítio onde estávamos não era possível ver a estrada, perguntei, admirado:
— Como pode saber que está vazia?
— Ora, é muito fácil saber que se trata de uma carroça vazia.
Fiquei um pouco irritado por não conseguir percebê-lo, sobretudo se era assim tão fácil. Foi então que o meu pai colocou a mão no meu ombro e explicou, olhando-me bem nos olhos:
— Percebe-se que está vazia por causa do barulho que faz. Quanto mais vazia a carroça, maior o barulho que faz.
O meu pai não disse mais nada e eu fiquei a matutar naquelas palavras durante muito tempo.
Quando hoje, já adulto, vejo uma pessoa tagarela e inoportuna a interromper uma conversa, ou quando eu mesmo quase o faço, por distração, tenho a imediata impressão de ouvir a voz do meu pai afirmando:
— Quanto mais vazia a carroça, maior o barulho que faz.
Wallace Leal Rodrigues
E, para o resto da vida
São Paulo, Editora O Clarim, 1979
(Adaptação)
A noz mágica
Sara e Flávio moram em apartamentos contíguos. Fazem quase tudo juntos: brincar e cantar, rir e chorar, inventar histórias e sonhar. Um dia por semana vão à feira. Mas não podem comprar nada porque não têm dinheiro.
Hoje, encontraram lá uma velhinha, sentada num pequeno banco, com uma cesta de nozes em cima dos joelhos. Nozes grandes e boas!
Flávio pensa para consigo: “Se ela me desse uma noz, só uma…”.
Nesse momento, a velhinha tira uma noz da cesta e oferece-a a Flávio.
— Muito obrigado! — diz o menino, admirado.
Ao chegarem a casa, Flávio descasca a noz. De dentro dela sai, a voar, um passarinho.
— Olha, esta noz é mágica! — exclama Flávio.
As crianças ficam espantadas. O passarinho vai pousar no ombro de Sara.
— Lembrei-me de uma coisa! — diz Flávio. — Vamos oferecê-lo à minha avó. Assim, não irá sentir-se tão só.
É então que, perante o olhar maravilhado dos dois, o passarinho começa a crescer.
A avó recebe com alegria o inesperado presente.
A ave esvoaça, contente, e deixa-se alimentar.
É dia de feira, novamente. Sara e Flávio procuram a velhinha das nozes. Lá está ela, no seu banquinho, com a cesta das nozes em cima dos joelhos. Também Sara deseja ardentemente uma noz mágica. Sem dizer palavra, a velhinha oferece-lhe uma. Cheia de alegria, Sara recebe a noz e agradece.
Já em casa, descasca a noz. E dela sai um pequeno violino.
— Olha, um violino mágico! — exclama Sara.
As crianças ficam espantadas. Na rua há um músico ambulante, que toca num violino já gasto.
— Lembrei-me de uma coisa! — diz Sara. — O músico poderá ficar com este violino mágico.
Nesse momento, o violino começa a crescer, perante o olhar maravilhado dos dois amigos.
Sara vai levá-lo ao músico ambulante, que fica feliz com a oferta inesperada.
E logo tira do violino sons maravilhosos, que muitas pessoas param a ouvir.
É outra vez dia de feira. Sara e Flávio procuram de novo a velhinha. Ambos querem uma noz mágica. Lá está ela sentada. Reconhece as crianças, faz-lhes sinal e diz:
— Hoje é a última vez que venho à feira.
E depõe uma noz na mão de cada um.
— Espero que saibam utilizar bem as minhas nozes — acrescenta, em jeito de despedida.
Sara e Flávio agradecem-lhe e regressam a casa. Como Flávio não quer perder a sua última noz mágica, semeia-a, na esperança de que, em breve, surja uma pequena nogueira. Pensa: “Quando for grande, a árvore irá dar nozes mágicas. Então, eu vendo-as e fico rico”.
Passam-se alguns anos. Sara mudou de casa e Flávio perdeu-a de vista. A nogueira cresceu. Agora, todas as semanas, Flávio vende as suas nozes na praça. Só que elas não contêm presentes mágicos. Muitas até estão chochas e ele cada vez tem mais dificuldade em vendê-las.
Dentro de dias será Natal. Sentado na praça, Flávio esfrega as mãos com frio. Enquanto, com tristeza, recorda as nozes mágicas da sua infância, abeira-se dele uma mulher, que para a olhar para as nozes.
— Estas nozes fazem-me lembrar tempos passados — diz.
Mete a mão no bolso do impermeável e tira uma noz, que dá a Flávio:
— É para ti. Guardei-a durante anos.
— Oh! Então tu és a Sara! — exclama Flávio.
A jovem sorri. Flávio abre a noz com todo o cuidado. Ambos se espantam por sair dela uma pequenina árvore que, em seguida, começa a crescer nas mãos de Flávio. Mesmo ali à beira há um vaso com terra, e ambos plantam nele a árvore, que continua sempre a crescer diante dos seus olhos. Então, Flávio aponta para as suas nozes e confessa:
— Nunca mais voltei a ter nozes mágicas!
— As nozes mágicas não abundam — sussurra Sara. — Não se podem comprar nem vender. É de graça que se recebem e é de graça que se dão.
— Agora compreendo — diz Flávio.
Olham ambos, novamente, para a árvore e ficam surpreendidos, pois ela cobriu-se de flores, em pleno inverno.
Marbeth Reif
La nuez mágica
Madrid, SM, 1989
(Tradução e adaptação)