«O direito do mais forte é a mais forte injustiça.»
Eu tinha catorze anos quando lutei de verdade pela última vez, com punhos e pés e o que quer que tivesse à mão. Já não me lembro do motivo da briga, talvez fosse uma rapariga, talvez um insulto casual no autocarro da escola, talvez porque “o inimigo” morasse do outro lado da linha imaginária, na rua Bellefonte, e frequentasse outra escola. Do meu ponto de vista, Charley era meio efeminado. Peito cavado, ombros caídos, caminhava com um passo longo de macaco. De qualquer maneira, a guerra fora declarada, e nós concordamos em encontrar-nos no terreno baldio ao lado da casa de Nancy Ritter. Na hora aprazada, aparecemos no campo de batalha, cada qual acompanhado por membros escolhidos das respetivas tribos.
Limitamo-nos, durante algum tempo, a circular um em volta do outro, esperando que o outro desfechasse o primeiro murro: “Queres alguma coisa?”;“Se me puseres a mão em cima, dou cabo de ti.” Aproximámo-nos um pouco mais. Começámos a empurrar-nos: voaram punhos para todos os lados, e o primeiro atingiu-me no nariz. “Raios!”, gritei. Eu era melhor na luta do que no boxe, por isso pensei numa estratégia. Atirei-me ao chão, agarrei-lhe as pernas e derrubei-o. Depois de muito rolar, com o braço encolhido, esperneando, acabei debaixo dele, incapaz de me mover. “Desiste”, ordenou ele, “ou parto-te o braço.”
Torceu-me o braço e esfregou-me a cara no cascalho. “Rendes-te?” Doía-me o rosto, porém menos do que o orgulho. Mesmo que não quisesse render-me, ambos sabíamos que eu estava derrotado. Por isso, ele soltou-me o braço e, depois de algumas descomposturas e humilhações obrigatórias, fomos para casa. Naquela noite, seguindo à risca o enredo das histórias de quadradinhos, jurei que nunca mais seria esmurrado por um fracote. Mandei vir um curso de Charles Atlas e comecei a transformar-me, eu que pesava quarenta e seis quilos, numa máquina magra e pequena de combate. No segredo do meu quarto, praticava “tensão dinâmica”, levantava pesos, fazia exercícios abdominais e de levantamento de pernas. Mais tarde, fiz um curso de luta livre. Durante anos, mesmo depois de entrar na casa dos trinta, exercitei-me na Associação dos Rapazes. Aperfeiçoei as minhas técnicas de agarrar e derrubar o adversário e, uma vez por outra, entrei em competições na classe dos pesos médios.
Nunca fui campeão, mas aprendi a gostar de lutar. E nunca mais ninguém me esfregou o rosto no chão. Entretanto, estudava filosofia e afiava as armas da dialética, do debate e da argumentação. Já com um doutoramento, tinha a mente ainda mais qualificada do que o corpo na arte da defesa pessoal. Como professor, participava de combates diários com colegas e alunos. Era bom no jogo academico, gostava dele e jogava para vencer. Mal notei que, com o passar dos anos, fui adotando aos poucos uma atitude combativa em relação aos demais – a mente e a postura do guerreiro. Eu era muito melhor a lutar do que a refletir ou a amar.
Agentes da violência Por que é que o género humano que nos deu a Capela Sistina nos levou à beira do cosmocídio? Por que é que os melhores e os mais brilhantes exercitaram a inteligência, a imaginação e a energia, e só conseguiram criar um mundo em que a fome e a guerra são mais comuns do que nos tempos neolíticos? Por que é que a história do que nos atrevemos a chamar “progresso” foi marcada pelo aumento do sofrimento humano? Não será porque os homens estão decididos a ser vorazes, agressivos e brutais? Estará algum gene egoísta, algum imperativo territorial, a impelir-nos cegamente para a ação hostil? Estará a história de Caim e Abel gravada no nosso ADN? Estará o excesso de testosterona a condenar-nos à violência e a enfartes prematuros? Como os homens têm sido, historicamente, os principais agentes da violência, é tentador atribuir a culpa à nossa biologia e concluir que o problema reside mais no projeto equivocado da natureza do que na nossa obstinação.
Mas todas as explicações deterministas passam por cima do óbvio: os homens são sistematicamente condicionados para suportar a dor, para matar e a morrer ao serviço da tribo, da nação ou do Estado. A psique masculina, antes de mais nada, é a psique do guerreiro. Nada nos plasma, molda e modela tanto como a exigência da sociedade de que nos tornemos especialistas no uso do poder e da violência, ou, como dizemos eufemisticamente, na “defesa”. Historicamente, a principal diferença entre homens e mulheres é que sempre se esperou que os homens fossem capazes de recorrer à violência quando necessário. A capacidade e a disposição para a violência têm sido centrais na nossa autodefinição. A psique masculina não foi construída sobre o racional: “Penso, logo existo”, mas sobre o irracional: “Conquisto, logo existo”. Quanto ao que veio a tornar-se o estado de emergência banal da vida moderna, concedemos ao Estado o poder de interromper a vida dos rapazes, de os convocar para servir o exército e iniciar no ritual da violência. Clichés que passam por sabedoria dizemnos: “O exército fará de ti um homem”, e “Todos os homens precisam de ter a sua guerra”. O ingresso no exército ou – se se é um dos “poucos felizardos” – na marinha, envolve o mesmo processo de destruição sistemática da individualidade que acompanhava a iniciação nas tribos primitivas.
A cabeça rapada, o uniforme, os abusivos instrutores de exercícios, as provas de iniciação física e emocional da instrução dos recrutas da marinha, visam destruir a vontade do indivíduo e ensinar ao recruta que a virtude fundamental do homem é não a de pensar por si mesmo, mas antes a de obedecer aos superiores, não seguir o que lhe ordena a consciência, mas cumprir ordens. Como os ritos de todas as sociedades guerreiras, isto ensina os homens a dar valor ao que é duro e a desprezar o que é “feminino” e terno. Em parte alguma, como nas forças armadas, aprendemos com tanta clareza a máxima primitiva de que o indivíduo precisa de se sacrificar à vontade do grupo, vontade essa representada pelas autoridades.
Na iniciação mítica, o neófito identifica-se com os heróis tribais, cuja história proporciona o modelo que será sobreposto à sua biografia. Que esse modo mítico-místico de iniciação ainda se encontra vigente na chamada “mente moderna” pode ver-se nas contínuas referências ao grande herói americano John Wayne, e na literatura que está a emergir sobre a experiência vietnamita. “A guerra era vista como uma prova de virilidade em que John Wayne matava todos os inimigos… Ocorriam-me imagens de filmes de John Wayne em que eu era o herói… As pessoas veem os maus e os bons na televisão e no cinema… Eu queria matar o mau.” Os primeiros cristãos aprendiam que a vida autêntica era uma “imitação de Cristo”; os iniciados nos cultos de mistério transformavam-se no deus Dionísio; os bons rapazes americanos que iam para a batalha transformavam-se em John Wayne, o homem mítico divinizado e imortalizado pelos media. Nos últimos quatro mil anos, o batismo de fogo tem sido um grande rito masculino de iniciação. A meta do homem era conquistar a medalha de bravura.
Numa reportagem sobre o Iraque, Phillip Caputo expõe a tradição de uma forma clássica: “Antes do combate, aqueles fuzileiros navais ajustam-se a ambas as definições da palavra infantaria que, ou significa “corpo de soldados equipados para o serviço a pé”, ou “infantes, meninos, jovens, em coletividade”. A diferença era que a segunda definição já não podia ser-lhes aplicada. Tendo recebido o sacramento fundamental da guerra, o batismo de fogo, a sua meninice tinha ficado para trás.” Na ocasião, nem eles nem eu pensávamos nisso nesses termos. Não dizíamos a nós mesmos: “Estivemos debaixo de fogo, derramámos sangue, agora somos homens.” Simplesmente, tínhamos consciência, de um modo que não podíamos expressar, de que alguma coisa significativa nos acontecera.
Embora apenas poucos homens sirvam realmente nas forças militares e menos ainda tenham sido iniciados na fraternidade dos que mataram, todos os homens estão marcados pelo sistema da guerra e pelas virtudes militares. Todos se perguntam: “Sou um homem? Poderia eu matar? Posto à prova, revelar-me-ia um bravo? Tem alguma importância o facto de eu ter realmente matado ou de me ter arriscado a ser morto? Dar-meiam mais ou menos valor se eu tivesse sido submetido ao batismo de fogo? Eu dar-me-ia mais ou menos valor? Que mistério especial envolve o iniciado, o veterano? Que certificado de virilidade se equipara ao Purple Heart ou à Medalha de Honra do Congresso?” Os homens foram todos programados culturalmente para conquistar, matar ou morrer.
Já no começo da vida, o rapaz aprende que precisa de estar preparado para lutar ou será apelidado de “fracote”. Muitos homens criativos que conheço eram sensíveis, compassivos demais para lutar. E quase todos cresceram sentindo-se, de certo modo, inferiores e com a certeza de que não tinham passado a prova da masculinidade. Desconfio que muitos escritores ainda estão a mostrar aos valentões do bairro que a pena é mais forte do que a espada. A prova modelou-nos a todos, quer tenhamos lançado bombas ou sido apanhados por elas. Somos, afinal, todos, feridos de guerra.
Sam Keen O homem na sua plenitude S. Paulo, Cultrix, 1998 (Excertos adaptados)