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Blog do Vavá da Luz

CLUBE DA HISTORIA EM : Uma professora em Katmandu

Uma professora em Katmandu Victoria Subirana, mais conhecida por Vicki Sherpa, nasceu em Ripoll, na Catalunha, em 1959. Estudou na Universidade de Vic e foi professora na sua cidade natal durante 10 anos. Em 1988 realizou a sua primeira viagem ao Nepal. Chocada pela miséria e pelo abandono em que viviam muitas crianças de Katmandu, resolveu desenvolver um projeto educativo para os mais desfavorecidos. Há vinte e cinco anos que Viki Sherpa luta para promover a educação no Nepal (a “sua” Pedagogia Transformadora), um dos países mais pobres do mundo.

E conseguiu-o, fundando escolas gratuitas para os meninos de rua. E não só… O início de uma longa aventura… ÌÌ As aulas começaram a funcionar com regularidade e cada professora espanhola tutelou uma nepalesa. Cinco professoras e um professor exerciam a docência. Havia ainda pessoal administrativo, de limpeza e de cozinha. Tínhamos um total de noventa crianças escolarizadas, repartidas por três anos de jardim-de-infância e um do primeiro ciclo. Os nossos métodos e sistema pedagógico converteram-se, a breve trecho, numa atração, pois as atividades eram pouco usuais, como dança, música, educação física, artes visuais, desporto, excursões, etc., desenrolando-se todas elas num ambiente privilegiado, em salas limpas, espaçosas e bem equipadas. A escola era completamente grátis e, para além da educação, proporcionávamos transporte aos estudantes da Escola Pemba que tinham anteriormente sido apadrinhados por espanhóis e a todos quantos morassem nos subúrbios.

As pessoas sentiam dificuldade em compreender muitas das coisas que se passavam na Escola Daleki, mas o que de todo em todo não lhes entrava na cabeça era que déssemos de comer às crianças. O desacordo provinha do facto de, enquanto estávamos entretidos a distribuir a comida, se formarem grandes filas de pobres por trás do muro da escola, que não eram mais que os pais e familiares dos alunos, munidos de sacos de plástico. Os filhos, sem que ninguém os visse, enchiam-nos com pedaços de carne, arroz, batatas, peixe, fruta e outros alimentos que, para eles, constituíam um luxo. À hora das refeições, as crianças lutavam entre si para repetir um prato de feijão e tentavam enganar-nos para obter outra dose de fruta, pois, apesar da sua tenra idade, conheciam bem o aguilhão da fome. Para a maioria, os alimentos servidos na escola eram a única coisa que tinham para comer.

Aqueles miúdos faziam uma vida dupla: à noite, quando íamos ao bairro dos turistas, dávamos com eles pelas ruas, praticando a mendicidade. A maioria desses mendigos de Thamel era explorada por redes mafiosas que os obrigavam a entregar parte do que obtinham. Alguns dos nossos alunos chegaram mesmo a deixar de frequentar as aulas. Tratava-se dos que não tinham arrecadado o suficiente para entregar aos seus «proxenetas» e se viam obrigados a pedir durante o dia com medo de ser torturados se não cumprissem a sua quota-parte. Outros passavam da mendicidade à venda de estupefacientes. Eram crianças com oito ou nove anos que se encontravam ao corrente do preço das drogas e sabiam na perfeição como satisfazer os gostos e as necessidades de alguns turistas que ainda vinham ao Nepal para descobrir reminiscências da época hippy. A Escola Daleki não pretendia voltar as costas à realidade social em que se integrava. Muito pelo contrário, vivia de olhos postos na sociedade, olhava para fora de si mesma e via as crianças utilizadas como carne para canhão, inocentes caídos em mãos de abutres que traficavam com as suas vidas sem o menor escrúpulo.

O comércio de crianças ocorria, no Nepal, em vários domínios: eram vendidas para redes de prostituição, para o tráfico de órgãos e para a adoção internacional. Os alcoviteiros estavam feitos com a Polícia e eram gente maligna que se alimentava da fraqueza dos desamparados, das suas desgraças e de um sistema político que, em vez de proteger os marginalizados, os explorava. A Daleki, com a sua sede de justiça, converteu-se numa escola que procurava alterar essa realidade, enfrentando cada problema com que se deparava e tentando encontrar uma solução. Podíamos ter passado ao largo e considerar que as questões sociais e económicas que afetavam as crianças não nos diziam respeito, mas tal atitude teria limitado sobremaneira a qualidade pedagógica do ensino. Nós encarávamo-las como seres que tinham de sofrer uma transformação integral e, para isso, fomos obrigados a abarcar diferentes áreas: a económica, a jurídica, a social e outras, para tentar responder às necessidades dos alunos.

Assim, começámos a lançar-nos em projetos paralelos: a assistência aos pais na educação dos seus filhos e na sua própria alfabetização foi o primeiro. Eles vinham à tarde e aprendiam a ler e a escrever. De facto, tais reuniões proporcionavam-nos a oportunidade de realizar campanhas contra o trabalho e a exploração infantis, pois muitas famílias retiravam as filhas da escola para as casar ou as pôr a trabalhar. Nessa época tive a sorte de encontrar uma pessoa que foi, é e será a alma e coração da Escola Daleki: o seu nome é Nimdiki Sherpa. Nunca encontrei tanta honestidade e dedicação em ninguém. Foi ela que acompanhou em pormenor o caso de Sukumaya, uma das ocorrências mais significativas no terreno da problemática da família. Sukumaya tinha cinco anos e o seu trabalho consistia em picar pedra de sol a sol.

Faltava muito à escola e, embora Nimdiki tivesse recorrido a inúmeros estratagemas, os pais não deixavam que ela abandonasse o trabalho. Tratava-se de uma família de sete filhos que vivia debaixo da ponte de Tankeswore. Antes das festas de Dasain, para satisfazer as suas obrigações religiosas, o pai recorrera a um prestamista e pediu-lhe seis mil rupias, deixando-lhe como garantia os brincos que constituíam o dote da esposa. O usurário, em vez de redigir um recibo no valor de seis mil rupias, escreveu sessenta mil. Quando o pai de Sukumaya, que era analfabeto, estava quase a assinar o papel, a garota lançou-se sobre ele, denunciando a fraude. O pai, chorando de alegria, pegou no pouco que tinha em casa, comprou fruta e grinaldas de flores e veio à escola oferecer-mas em sinal de agradecimento. O seu caso correu de boca em boca e ele transformou-se no nosso colaborador mais entusiasta. Tomei, em certa altura, conhecimento de que Kushila Gurung, uma menina de doze anos, desaparecera há três dias e ninguém sabia do seu paradeiro.

A professora dela, Nimdiki, e eu fomos falar com os pais e comunicámos o facto à Polícia. Estes averiguaram que fugira com o noivo e aconselharam os progenitores a dar o caso por encerrado, porque, segundo os agentes, tudo não passava de uma história de amor. Eu levantei as mãos para o céu e recordei aos agentes que a lei penaliza os matrimónios entre menores de dezasseis anos. Persuadi, ainda, os pais a persistir na denúncia e a acompanhar-me a um advogado que tomasse conta do caso. Pus o assunto nas mãos de um jurista especializado em fuga de menores e tráfico de carne branca. Tratava-se de um profissional muito polémico por ter a cabeça a prémio entre os mafiosos porque, por mais de uma vez, conseguira reunir provas para meter na cadeia os proxenetas que traficavam mulheres. E assim começou uma cruzada que parecia não ter fim.

O advogado e os seus ajudantes procederam a averiguações e deram-nos a entender que a mãe de Kushila estava envolvida no assunto e vendera a filha por uma soma respeitável. Aconselhou-nos ainda a mantermos os nossos planos em segredo para que ela, caso fosse verdade estar implicada, não nos pudesse boicotar. Passavam os dias e nada se sabia do paradeiro da moça até que, uma tarde, nos informaram de que alguém os vira em Thankot, uma aldeia próxima da fronteira. Nimdiki e eu respondíamos sem demora às convocatórias que os causídicos nos enviavam constantemente e chegávamos a casa esgotadas por andar de povoação em povoação a identificar crianças desconhecidas que eram encontradas pela equipa de advogados. Tratava-se de uma atividade arrepiante. Olhávamos, uma a uma, para raparigas que oscilavam entre os nove e os dezoito anos, mas Kushila nunca se encontrava entre elas. Um dia, Nimdiki comunicou-me que já não aguentava mais, porque todo aquele assunto a deprimia extraordinariamente e acreditava que a pobre moça já devia ter passado a fronteira, como milhares de jovens nepalesas que acabam na Índia a exercer a prostituição. Eu estava tão desesperada que não sabia para onde me virar. Se Nimdiki desistisse, eu ficava completamente só no meio daquilo tudo e já sentia as forças a falharem-me.

Um dia, vieram os advogados dizer-nos que alguém avistara Kushila num restaurante de Boudha e que nos despachássemos para os ajudar a identificá-la. Tratava-se de um antro em que apenas se viam homens. Era um lugar sujo e malcheiroso, onde se serviam comes e bebes. A rapariga insinuava-se junto dos clientes como chamariz: encontrava-se perfeitamente maquilhada e com os lábios pintados de um vermelho intenso. Kushila servia às mesas toda aperaltada, como se estivesse num bordel. Quando Nimdiki a viu, deitou as mãos à boca em sinal de surpresa, porque jamais imaginara encontrá-la em tais circunstâncias. Quando ela nos viu, quis pôr-se em fuga, mas era demasiado tarde, por as portas se encontrarem vigiadas e ser-lhe impossível sair.

Kushila sentia vergonha de me olhar nos olhos e a primeira coisa que fez quando me teve diante de si foi tirar o batom dos lábios. Estava muito assustada e desatou imediatamente a chorar. Não queria de maneira nenhuma vir connosco, pois garantia estar apaixonada pelo rapaz que a seduzira, que se revelou ser filho de um conhecido traficante de carne branca que utilizava o miúdo de dezasseis anos como isco para levar as jovens a enamorarem-se dele. Quando elas já estavam pelo beicinho, persuadia-as a fugir para a Índia a fim de serem vendidas como prostitutas. Kushila deixou bem claro que, se o noivo não a acompanhasse, cortaria as veias. Tratava-se, de facto, de um grave dilema e nenhum de nós sabia como agir. A mãe, pelo seu lado, recusava-se a aceitar a filha em casa, pois afirmava que já não era virgem, pelo que se tornara impossível casá-la.

A notícia de que a miúda estava grávida encerrou o assunto. Tudo aquilo foi demasiado forte para mim e senti-me morrer de dor. A Polícia prendeu o proxeneta e eu peguei em Kushila pelo braço e disse-lhe: — Se a tua mãe não te quer, vem com o teu noivo para a escola. Lá, haverá lugar para ti. O ocorrido com Kushila deixou-nos a todos perplexos. O advogado comentava que o rapaz, com apenas dezasseis anos, já contraíra quatro vezes matrimónio, tendo as esposas anteriores desaparecido repentinamente. Quando pretendemos chamar a atenção da rapariga, que afirmava ter encontrado o homem da sua vida, para esta realidade, respondeu-nos que as anteriores mulheres do noivo eram más e que fugiram com camionistas. Toda esta questão trouxe-nos mais um problema, porque tivemos de os instalar provisoriamente na escola, onde não dispúnhamos de condições. Poucos dias após estes acontecimentos, veio ter connosco uma representante de The Human Touch Fund, uma organização fundada pelos trabalhadores da UNICEF no Nepal que destinavam parte dos seus vencimentos a obras de beneficência. Trazia uma miúda chamada Babita, cega, raquítica e com um grave problema motor, e pediu-nos que lhe déssemos abrigo pois necessitava urgentemente dos cuidados de uma instituição idónea.

Eu não sabia como havia de responder a tal solicitação, mas ela contou-me que já percorrera vários hospitais e centros do país em busca de auxílio e o nosso era o único a possuir as condições físicas, pedagógicas, terapêuticas e profissionais para atender Babita. Acrescentou, ainda, que pretendia denunciar as condições deploráveis de funcionamento da maioria das ONG que prestavam serviços educativos no Nepal. Segundo ela, os centros que operavam em Katmandu recebiam enormes quantias de modo a poderem contribuir para a educação das crianças pobres. No entanto, quando se visitavam tais instituições nepalesas, apresentavam umas condições deploráveis: os menores não recebiam os devidos cuidados, reinava uma notória falta de higiene, as salas apresentavam-se sujas de lixo, os miúdos andavam descalços, sem roupa, doentes, cheios de ranho, e o pessoal não possuía qualquer preparação. Os donativos recebidos não eram utilizados em benefício das crianças, que continuavam a manter em condições miseráveis.

Era esse estado de pobreza que gostavam de mostrar aos turistas e ricaços que os visitavam para melhor lhes sacar o dinheiro. Tratava-se de um autêntico círculo vicioso: quanto mais miséria mostrassem, maiores as receitas. Não estranhei nada daquilo; infelizmente, sabia perfeitamente a que se referia. Mas o que mais me indignava era a ignorância que reinava por todo o lado. Se quem vinha ao nosso centro não dispunha de qualquer informação, nem capacidade de análise a respeito das ONG, em vez de nos dar mais dinheiro que nos permitisse prosseguir com o nosso trabalho, concediam-no a esse género de instituições que utilizavam a sujidade, a miséria e a doença como chamariz para atrair verbas.

Morria de pena ao olhar para a criança, que parecia um esqueleto ambulante: estava suja, malnutrida, cega e a coxear de uma perna… Por outro lado, sentia-me impotente por não dispormos de instalações de internato para poder dar-lhe abrigo. Existia ainda um problema de pessoal: se queríamos tratá-la como devia ser, ela necessitava de uma pessoa a tempo inteiro, pois encontrava-se num estado deplorável e tínhamos de encontrar alguém que pudesse tratá-la, protegê-la e dar- lhe afeto. Foi o que transmiti à representante da UNICEF. Ela respondeu-me que estava em condições de pagar o vencimento de alguém que se ocupasse de Babita, mas que não podia ajudar-nos a abrir o internato. Tal situação fez-me ver que precisávamos de atuar rapidamente. Não tínhamos dinheiro, mas contrairíamos um empréstimo para que Babita e Kushila com o marido pudessem viver nas nossas instalações. Não era mesmo uma situação paradoxal? A maioria das ONG de Katmandu beneficiava de fundos e subvenções governamentais e privados, mas, quando chegava a altura de ajudar os menores realmente necessitados, lavavam as mãos e éramos nós quem tinha de pedir mais dinheiro para seguir com o trabalho em frente.

Poucos dias depois, apareceu um artigo no diário The Katmandu Post, com o escandaloso título: «Os centros para crianças fecham as portas a esta menina abandonada.» O escrito fez furor no mundo das ONG do Nepal. Fora redigido por membros da comissão de The Human Touch e denunciava o estado precário de funcionamento dos centros em que tentaram internar Babita: «Uma menina de seis anos há mais de um mês que se vê obrigada a saltar de instituição em instituição por ser impossível encontrar um centro na selva de mais de cento e cinquenta organizações que ajudam os marginalizados e abandonados…» Finalmente, The Human Fund Bulletin, da UNICEF, inseriria num artigo «Quando a Polícia nos informou do caso de Babita, deitámos mãos ao trabalho para encontrar um lugar para ela. O HTF contactou mais de cinco organizações e, finalmente, encontrou-o.

Trata-se da organização VEDFON, uma ONG para crianças marginalizadas que opera no Nepal desde 1993. Situa-se em Samakushi e Vicki Sherpa, uma espanhola, é a diretora.» Devido ao artigo no jornal, a nossa escola tornou-se famosa em todo o país e nomearam-me assessora pedagógica da Budhanialcanta School, que é patrocinada pelo rei do Nepal. Mais uma vez os acontecimentos punham-me perante o eterno paradoxo que é a vida: quem fora para o Nepal com o propósito de educar os párias do país era chamada ao palácio para assessorar a escola real.

Vicki Sherpa Uma Professora em Katmandu Lisboa, Temas e Debates, 2008 (excertos adaptados)