Pierre morava numa quinta perto de Moncamp, o campo das abelhas.
Élise vivia mais abaixo, na outra margem do rio, não longe da aldeia de Salmiech. Nessa altura, havia ainda uma escola para meninas e uma escola para meninos. Era tempo de guerra, não se podia demorar no caminho. Então, Élise e Pierre encontravam-se, ao domingo, na missa. Já não se sabe quando começou a zanga que separava as duas famílias. O pai Geniès falava de um burro da família que os Dourdou teriam deixado fugir no tempo do bisavô. Dizia-se também que a avó de Élise e o tio-avô de Pierre se tinham apaixonado um pelo outro, mas as famílias não tinham aceitado. Dizia-se tanta coisa… O certo é que os Dourdou e os Geniès estavam de relações cortadas. Por isso, nenhuma ponte atravessava o rio. Mas Élise e Pierre sabiam como e onde se podiam encontrar.
No verão, a água descia e uma passagem pouco funda formava-se à entrada do bosque de Saint-Hilaire. Aí, escondida debaixo dos castanheiros, tinham construído uma cabana de ramos e de fetos. Através deles passavam raios de sol, e essa cortina de luz era tão bela como um véu de noiva. Era lá que Pierre e Élise imaginavam histórias…Construíam castelos com terra e aldeias com musgo. Nos caminhos desertos, pisavam carreiros de formigas como se fossem outros tantos soldados inimigos. Em meados de agosto, Élise contou a Pierre que uma mulher tinha chegado a sua casa. Estava sozinha, cheia de fome e grávida. A mãe e o pai discutiram, a mãe dizia alto e bom som que não queria mais uma boca para sustentar. Mas o pai tinha tomado uma decisão: a mulher ficara em casa deles. O seu nome era Sarah mas deviam chamar-lhe Marie e dizer que era uma prima de Paris. Pierre e Élise perguntavam a si mesmos por que razão aquela mulher tinha de se esconder, mas «era a guerra», como sempre diziam os adultos. Sarah-Marie ensinou a Élise cantos que esta não conhecia. E, um dia, arrancara uma estrela amarela cosida no seu casaco para remendar a boneca de trapos da menina. Élise adorava-a.
Pierre tinha esculpido para Élise uma cabeça de cavalo numa vela. E esta deu-a a Marie. Amiga de ambos, só ela sabia que as crianças se encontravam em segredo. Com as chuvas do outono, o rio tinha aumentado o caudal. Era impossível passar sem se molhar. Os dias eram mais pequenos, os pais já não se afastavam muito da quinta, era difícil passar despercebido. Élise e Pierre viam-se menos. Mas, às vezes, Élise corria até à curva do rio. Esperava pelo Pierre, sabia que ele passava por lá para ir buscar os perus. Faziam sinais de um lado para o outro do rio. Quando o inverno chegou, o rio ficou gelado. As crianças já não saíam de casa, tinham muito frio com os seus tamancos de madeira. A cabana deles cobrira-se de geada, e os ramos mais velhos das árvores rachavam com o peso da neve. Nos vidros embaciados das janelas, Élise desenhava anjos e estrelas. Estava à espera do Natal. O ventre de Marie estava agora muito redondinho; e ela cantava menos. Pierre aprendia a tabuada com a mãe, e o pai ensinava-o a lidar com os utensílios. Soletrava «seis vezes seis…», enquanto afiava o canivete na pedra de amolar de grés. Também ele estava à espera do Natal. Tinha pedido uma espingarda de madeira e uma boina nova. A sua família iria a pé à missa do galo, mas ele poderia ir no automóvel dos vizinhos.
Tinham-lhe prometido que passavam para o apanhar. Andar de carro com a luz dos faróis seria como uma prenda. A igreja estaria toda iluminada com velas, e tão fria que os bancos de madeira gelariam as nádegas, como todos os anos. E, na noite de Natal, Pierre veria Élise. Os dias demoravam a passar, demoravam tanto… Mas, por fim, a noite de Natal tinha chegado. Élise esperava a hora da missa no seu quarto. As chamas da lareira pintavam as paredes com ogres e duendes terrivelmente agitados. Para os afastar, Élise fazia tranças nos cabelos de lã da boneca, cantando. Talvez no dia seguinte de manhã tivesse uma camisola de malha para a sua boneca…Ou então uma caixa com tintas e pincéis? Um barulho de vozes passou através das tábuas do soalho. Élise foi pé ante pé para o cimo das escadas. Através do corrimão, via a mãe andar para cá e para lá, com os braços cheios de toalhas. ― Já cá faltava isto! Vais ver, vamos perder a missa. Eu bem te avisei que esta rapariga ia trazer problemas! O pai não respondia. Pendurava uma bacia na lareira. E a mãe continuava: ― Meu Deus, temos de olhar por ela. Apesar de tudo, não podemos deixá-la assim… A mãe aproximava-se da escada. Élise voltou para a cama, com as faces vermelhas. A mãe entrou com um casaco na mão: ― Veste isto.
Corre até à casa dos Dourdou. Podes passar naquele sítio pouco fundo, a água está gelada. Mas bate primeiro com o pau para veres se o gelo está sólido, não te esqueças! Diz à mãe Dourdou que precisamos dela aqui: é preciso uma parteira, e já! E como Élise, espantada, olhava para ela sem dizer nada, acrescentou: ― Julgas que não vi a tua casinha, neste verão, com o filho dos Dourdou? Vamos, corre. E não me chegues cá toda molhada! Uma lanterna elétrica numa mão, um pau na outra, Élise saiu na noite branca de luar. O caminho rangia sob os seus passos, as árvores lançavam longas sombras a seus pés. Teria voltado logo para casa a correr, mas a frase da mãe não lhe saía da cabeça: «Não vamos deixá-la assim…» Marie corria perigo. Élise pôs-se a cantar, primeiro baixinho, depois cada vez mais alto para ganhar coragem. Pequenas nuvens de vapor saíam da sua boca e afastavam as sombras maléficas. Élise caminhava depressa, chegaria em breve à passagem. Em casa dos Dourdou preparavam-se para partir para a missa.
A pé, era preciso quase uma hora para chegar à aldeia. Se houvesse uma ponte, ganhariam tempo. Mas não havia. Pierre enfiava a sua camisola de domingo, quando ouviu…a voz de Élise. Sem dúvida o vento na sebe pregava-lhe uma partida. ― Pierre! Abre, sou eu, a Élise,…Pierre! O pai Dourdou calçava com muito esforço os sapatos de verniz. Ofegante, disse: ― Não estão a chamar por ti? Pierre encolheu os ombros: ― É o vento a soprar. — Hoje não há vento. Vai abrir a porta. Élise congelava com o frio. Mas, quando viu o rosto assombrado de Pierre, desatou a rir: ― Sou eu, não me conheces? Parece que viste um fantasma! Pierre estava estupefacto: pela primeira vez, desde muito antes do seu nascimento, uma Geniès entrava na sua casa. Quando Élise explicou que precisavam da Mme Dourdou em casa deles, o pai pigarreou: ― E por que motivo precisam? Que eu saiba a tua mãe não está à espera de nenhum pequenote…? Élise baixou os olhos: ― É para a nossa prima ― insinuou. Pierre estendeu o casaco à sua mãe e disse: ― Vou contigo. O pai murmurou algumas palavras no seu dialeto, enfiando o casaco de caça. Falou alto ao filho mais velho: ― Jacques! Toma conta dos miúdos, temos um assunto a tratar em casa dos Geniès. Élise levou-os até à passagem. Pierre atravessou atrás dela mas, quando o pai pousou o pé sobre o rio gelado, ouviu-se um estalido. ― Ai, valha-me Deus! Se eu for ao fundo, nunca mais me apanham ― disse, avançando com os braços afastados como um malabarista, para ficar mais leve. Em casa de Élise, tinham posto a cama de Marie junto da lareira. Quando o grupo, roxo de frio, entrou em casa, um ar gelado rodopiou lá dentro.
A mãe de Élise disse à do Pierre: ― O trabalho de parto está já muito adiantado. E as duas mulheres apressaram-se à volta de Marie. Com a mão fria sobre a testa da sua amiga, Élise limpava-lhe as gotas de suor. Na cozinha, Pierre e os dois homens estavam calados. Com o chapéu na mão, o pai Dourdou acabou por dizer: ― Este inverno vai bem frio. E o pai Geniès respondeu: ― Melhor tempo virá com a primavera. Por fim, um grito de bebé rasgou a cortina de silêncio. No momento em que a mãe Dourdou cortava o cordão que unia Marie ao bebé, os sinos da igreja repicaram. ― Desta vez, perdemos a missa, é certo! ― disse a mãe de Élise. Deu o bebé a Marie e acrescentou: ― Mas valeu a pena. É uma menina e muito bonita! ¾ Vou chamar-lhe Myriam ― revelou Marie. ― Na minha terra, é assim que se diz Marie. Os sinos tocaram com mais intensidade. Lá fora, a neve começou a cair. ― Foi complicado vir até aqui…― começou o pai Dourdou. ― Se houvesse uma passagem, seria tudo mais fácil. ¾ Oh, sonhei com isso tantas vezes! ― respondeu o pai Geniès. ― Se houvesse uma ponte, pouparia tempo quando fosse apanhar mel em Moncamp.
Depois de um silêncio, os dois homens olharam-se por fim, mas foi Pierre quem disse: ― Não é difícil construir uma ponte. ¾ Oh, por favor! Papá… ¾ suplicou Élise. ¾ Pois é. Basta deitar mãos à obra ― acrescentou o pai. O bebé começou a gritar. ― Cá está um que tem fome ― disse a mãe Dourdou, encostando docemente o nariz do bebé ao seio de Marie. ¾ E nós também temos fome ― anunciou a mãe de Élise. ― Eu tinha preparado umas filhoses, querem partilhá-las connosco? Os Dourdou aceitaram com um sorriso. Depois, o pai de Pierre declarou: ― Sobre a vossa prima, podem ter a certeza que não diremos nada. Primas assim, toda a gente deveria cuidar bem delas nos dias que correm. De olhos postos na filha agarrada ao seu peito, Marie murmurou um canto vindo da noite dos tempos. Pierre ajudou Élise a pôr os pratos. O passeio de automóvel pouco importava, Pierre preferia um Natal assim. No dia seguinte de manhã, as crianças teriam os presentes. A espingarda de madeira e a caixa para colorir, certamente. E laranjas também. Mas o mais belo presente, era esse serão igual a nenhum outro, o nascimento de Myriam e a esperança de uma ponte. Como se, naquela noite de Natal, a guerra, por fim, tivesse começado a perder terreno…
Cécile Roumiguière ; Natali Fortier Entre deux rives – Noël 43 Paris, Gautier-Languereau, 2006 (Tradução e adaptação)