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Uma cruz no caminho ( Thomas Bruno Oliveira )

 

Uma cruz no caminho

 

A simpatia de Seu Zé Romão

UM CERTO DIA, andando pela estrada do Riacho do Padre, caminhos antiquíssimos por onde tangerinos e tropeiros pisaram durante séculos, encontro Seu José Romão, um agricultor devoto de sua terra, seu chão com a mesma intensidade que reza para o padroeiro São Sebastião. Um senhor de 84 anos que possui na simplicidade sua maneira mais correta de viver. Ele estava com seu trabalhador e amigo Adelson em um canto de cerca fazendo um fogo para reparar o cabo de um machado. Eu fiquei a observar (e aprender) o processo de restauro daquela ferramenta, ao passo em que ouvia dele algumas histórias antigas.

 

Seu José Romão ouve – desde muito pequeno – uma velha história, seu avô já tinha a história como perdida na poeira dos tempos, de modo que ele calcula que o ocorrido se passou em uma época muito anterior a cento e cinquenta anos. “Mas que história é essa seu Zé Romão?” indaguei. Ele disse que é de uma cruz de madeira, um cruzeiro antigo que existe em suas terras. “Eu vou contar para o senhor”, ele fala ao mesmo tempo em que se escora em um mourão de cerca e abana o calor com a aba de seu chapéu de couro.

 

“Isso foi num tempo muito antigo, tão antigo que sequer meu avô soube quem era. Sei que minha terra aqui se chama Cruz das Almas e é justamente por conta desse cruzeirinho que tem na beira de um caminhozinho que nem se usa mais. Um caixeiro viajante vinha acolá de Campina (Grande) e parou na vilazinha de Boa Vista. Saindo de lá ele percebeu uma coisa estranha, em quase toda curva do caminho, ele vê um vulto, era justamente uma pessoa que estava o seguindo, um malfazejo, alguém que no mínimo pretendia roubar”. O roubo de mercadorias é da época em que se iniciou a comercialização de produtos. Vendedores viajantes, por vezes, andavam em comboio para evitar os assaltos, embates que, quase sempre, terminavam em morte do comerciante ou do ladrão.

 

Com um sorriso solto e fala meio cantada, com óculos de lentes levemente amarronzadas, Seu Romão continuou: “o caixeiro viajante, que ninguém nunca soube seu nome, não teve medo, situação como aquela ele já tinha passado. De Boa Vista, rumou para o Riacho do Padre, sítio que tem trezentos anos, pois bem, nesse caminho que leva a Gurjão, que antigamente era Timbaúba, o caixeiro acelerou o passo e numa curva do caminho andou em círculo, de modo a confundir quem o seguia, pois os rastros iam de um lado para o outro e não levava a lugar nenhum. Ao caminhar em arrodeio, o comerciante se escondeu no mato para pegar o malfazejo. Ao chegar ao lugar e procurar pelo rastro do caixeiro, o bandido se assustou com o vulto no meio do mato e os dois entraram em confronto. A briga foi feia até que o caixeiro conseguiu render e matar o cabra à punhaladas”.

 

Tempos depois, gente da região encontrou o cadáver, enterrou e erigiu um cruzeiro de madeira. Assim como a Cruz do Gavião, no caminho entre Boa Vista e Campina Grande, há uma cruz mais velha lá escorada, e uma maior e mais recente, mas não tão recente assim, pois a Cruz das Almas está bastante carcomida pelo tempo. Segundo Câmara Cascudo: “As cruzes de madeira marcam sepulturas cristãs em todo mundo e também os lugares onde alguém faleceu de morte violenta, assassinato ou acidente” Em sua base há incontáveis pedras, costume bastante comum no folclore brasileiro. Cascudo confirma: “Junto às cruzes põem pedrinhas representando orações, equilibradas no transepto ou agrupadas ao pé”.

 

Que história! Afortunado com a boa conversa com Seu Romão, recebi o convite: “Qualquer dia o senhor vem e visita, se não tiver medo de alma, pode vir…” Agradeci a gentileza, a atenção e o contive, confirmando a ida muito em breve.

 

Hoje, oculta em meio à caatinga brava, a Cruz das Almas esconde em si uma história muito interessante, um marco da cultura, dos costumes, da história e da memória caririzeira.