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Um antropólogo afetivo ( Thomas Bruno Oliveira )

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Um antropólogo afetivo

 

Carlos Azevedo em lançamento na Livraria do Luiz

As mãos nos bolsos conferem se carteira, celular, caneta e lenço estão em seus lugares. Preciso sair de casa apressado para buscar minha mãe no trabalho. Na porta para a garagem, me dou conta de que passei por uma caixa diferente no braço do sofá, retorno rapidinho. Caixinha arrumada, amarela, Correios? Correios, Sedex! Em cima vejo meu nome e endereço escrito com uma caligrafia firme, inclinada, inconfundível. Nem precisava ver o remetente para saber que era meu amigo Carlos Alberto Azevedo, antropólogo-mór dessas terras, um gigante que a Parahyba precisa reverenciar.

 

Peguei a caixa com as duas mãos e encostei ao peito, depois lembrei que precisava “besuntar” com álcool, em uma breve sacudida, vi que era um livro. Deixei no mesmo lugar, daqui a pouco voltaria. Tempos depois, já em casa, com a caixinha em mãos, corri para meu refúgio como um felino foge com a presa para um lugar seguro. Limpo calmamente, vejo sua assinatura e uma recordação me vem muito forte, é que em 2008 ele publicou: ‘Arqueologia: estudos e pesquisas’ e me disse que era seu último livro, seu último sonho, como escreveu na dedicatória. Para a contracapa, pinçou um parágrafo de um artigo que escrevi na época para o Diário da Borborema chamado ‘Encontrando o Mestre Azevedo’. Me revoltei e, acreditando em suas palavras, quase não o dei chance de argumentar: “Carlos, você tem tanto a escrever, é inadmissível que você pare por aqui. Sua extraordinária capacidade intelectual e perspicácia vai render muito a Parahyba, você tem que reconsiderar!” E fiquei muito feliz em ver os livros que foram publicados com o decorrer dos anos. Na pandemia, nos falamos poucas vezes.

 

“O último sonho” em 2018

A dedicatória

Até que no final de maio, folheando o jornal A União, vi um artigo de Carlos: “Simplesmente, peguei carona no ‘trem’ do evento epidêmico (covid-19) – esse ‘trem’ só passa de cem em cem anos. O último passou em 1918, a gripe espanhola”. No texto, ele conta como aborda a pandemia como evento social em livro. Mais um! Ótima notícia.

 

É meu amigo Carlos, essa pandemia não foi fácil para ninguém, além do mais, para uma pessoa de sensibilidade tão aguçada quanto a sua. Arrebataram a liberdade, nos transformando em arquétipos de interação virtual. Como bem afirmou: “acuaram o animal social”. Sábio foi Gilberto Freyre quando o recomendou: “Meu filho, você é muito sensível. Vá ser antropólogo!”, e todos nós ganhamos com isso. Etnografia quantitativa não era mesmo sua vocação. Como bem diz no mais novo livro ‘Tristes tempos: o coronavirus & eu’ (Ideia, 2021), você é um antropólogo muito afetivo, e é mesmo.

 

Ao lado de Carlos, no lançamento, ouvindo o saudoso Wellington Aguiar (2008)

 

Volto à caixa, abro e encaro o livro pela primeira vez. Na capa, uma estátua do poeta Augusto dos Anjos de máscara. Sem máscara, cheirei as folhas a passar e logo iniciei a leitura. Naquele momento, passava um filme em minha mente por espelhar minhas experiências naquela escrita. O documento narrativo é cronológico e se inicia no dia dezoito de março de vinte, quando ainda não sabíamos direito o que estava ocorrendo. As páginas vão passando, a inconfundível verve antropológica e sensível traz nuances reveladoras, interpretando momentos, entrecruzando falas que assumem a narrativa abordando o presente e recorrendo muitas vezes ao passado. Nessa interlocução, diálogos interiores se abraçam a falas dedicadas, inspiradas em leituras. A mim dedicou: “As meninas da ‘manichula’: As meninas da ‘manichula’ (Mandchúria) na segunda onda da gripe espanhola que assolou o Brasil, foram embora para a praia do Poço. Lá, também, estavam confinadas as famílias tradicionais da cidade da Parahyba”, dedicação oriunda da leitura de um estudo que fiz com José Edmilson sobre o Beco da Pororoca, em Campina Grande, e que foi motivo de boas conversas em uma tarde quente na APL com os grandes cronistas Gonzaga Rodrigues e o saudoso Martinho Moreira Franco. Sua estética da repetição dá firmeza a ideias, como também ressoa como um eco: “…muitos rituais de despedida – tudo à distância: Tristeza. Tristeza, Tristeza.”, sempre em três, e eu lembrando dos múltiplos de três de Balduíno Lélis, a chave para compreender a Pedra do Ingá.

 

A nova obra

Lá pelas duas e meia da manhã, concluí a leitura e me deleitava com o último capítulo, a iconografia que fecha o livro com um retrato de Carlos, de máscara, sendo vacinado (no miolo, ele afirma que Berlim, onde ficou exilado por muitos anos, entrou em contato para vaciná-lo).

 

No sábado seguinte liguei para meu amigo Carlos. Encantado com o livro, queria conhecer os meandros de sua escrita. Foram quatrocentas páginas escritas à mão, deslizadas por nada menos que quinze canetas. “–Thomas, eu tinha que dar esse documento. Eu lido com o humano e o humano está ameaçado, documentei uma fase aguda da humanidade. O livro me libertou das quatro paredes. Fugas, para tempos em que éramos felizes e não sabíamos”. Foram quase duas horas de uma prazerosa conversa, sempre uma grande aula, uma riqueza antropológica, filosófica, humana. No alto de seus oitenta anos, Carlos é uma fonte de inspiração. Sua história de vida e sua escrita me (co)move, e como o livro retrata até fins de março de 21, já fiz uma nova cobrança sem aceitar um não: – Prepare o volume dois, com mais um ano ou até os nossos dias. Escreva, escreva, escreva!

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Publicado na coluna ‘Crônica em destaque’ no Jornal A União de 18 de setembro de 2021.