UM ALEMÃO NA VIDA DO MEU PAI RAMALHO LEITE
Quando arribaram de Moreno para Borborema, em uma madrugada de agosto de 1942, meus pais, Arlindo e Eurídice, vinham no rastro do alemão Guilherme, já acomodado naquele burgo pelo manto protetor do doutor José Amâncio Ramalho, o chefe político e provedor econômico do lugar. Meu pai conseguira salvar o estoque de sua loja financiada pelo alemão, mas este perdera quase tudo quando incendiaram sua casa de comercio e residência. Uma vida nova seria aberta para os dois- meu pai e o alemão- sócios em uma firma de tecidos e ferragens. Quem não teria esperança de vida, seria a minha irmã Tereza Newman. Carregada no ventre da minha mãe, pagou pela aflição da gestante durante aqueles dias de horror. Foi a primeira paraibana vitima da Segunda Grande Guerra, mesmo a milhares de quilômetros do campo de batalha.
Segundo me contaram, a população da Vila de Moreno (Solânea) tinha estima pelo alemão. Detestava, porém, sua mulher, dona Margarida. Por conta dela, o comércio do europeu virou alvo dos justiceiros após ser transmitida a noticia do fundeamento de navios brasileiros na nossa costa, por obra de submarinos alemães e/ou italianos. Dona Margarida era defensora da sua pátria e, por conta dessa paixão, chegou a proclamar que, vencendo a Alemanha, faria uma “calcinha” com o tecido da nossa bandeira. Irritava os locais com essas chacotas. Pagou por isso.
Em Borborema já residia outro patrício de “seu” Guilherme. “Seu” Harris Kramer, mecânico dos melhores, atendia aos engenhos de rapadura e participara da montagem de Hidroelétrica Borborema. Constituiu família na cidade. Dona Alzira, sua esposa, era filha de Adelson Lucena, tio do estimado senador Humberto Lucena. Dona Alzira foi agente dos Correios até sua aposentadoria. O casal era compadre dos meus pais.Um de seus filhos, Artur, é auditor fiscal do Estado. O trio de alemães no brejo seria completado com “seu” Frederico, que se fixou em Bananeiras e depois migrou para Natal.
Um outro alemão teve importância na história de Bananeiras em épocas mais remotas. Chegou trazido sob custódia, do Recife, pelo cafeicultor Antonio Alves da Rocha, filho do Comendador Felinto e neto do Barão de Araruna, para montar uma usina de beneficiamento de café e de arroz. Esse alemão, chamado Wildt, era engenheiro mecânico e estava detido em função da primeira grande guerra. Antonio Rocha conseguiu sua liberação, e mediante assinatura de um termo de responsabilidade trouxe o alemão para Bananeiras. Este, logo cedo encantou-se com uma filha do seu guardião, conhecida como Dina.O casamento não demorou, mas essa família cresceria sem o pai, acometido de febre tifóide e falecido prematuramente. Uma de suas filhas – Herta, viria a ser avó da primeira coronel da Policia Militar da Paraíba- Cristiane Wildt.
Mas o alemão da minha história é outro. Seu Guilherme era um comerciante nato. Tal uma fênix, renasceu das cinzas, literalmente. Sua casa de comércio em Borborema vendia de tudo. Tecidos, material elétrico, ferro, parafusos, prego, graxa, óleo lubrificante, gasolina, querosene e até água destilada para renovar baterias. Meu pai, como seu sócio, era cumpridor do ritual da severidade germânica. A grave enfermidade do alemão levou-o de volta à família, no Recife. Com o seu falecimento, meu pai compraria a parte dele na empresa. Bastou ficar sozinho e se encantar com os acenos da política, para jogar fora o que amealhara durante anos. Quebrou.
O que quebrou também foi um gramofone de cordas do alemão. Na mudança apressada, a geringonça jogada por cima de um muro, caiu na cabeça de Antonio Souto, filho de outro com o mesmo nome que Arnóbio Viana batizou uma escola na Vila Gama. Souto foi o menino que ajudou meu pai no esforço de salvar alguma coisa do alemão. Carregou para sempre uma cicatriz na testa. A geringonça funcionava pressionando-se e rodando o dedo sobre o disco. Era meu brinquedo preferido. A música alemã arranhada por uma agulha enferrujada, ainda hoje ressoa nos meus ouvidos.