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Na longa e larga calçada da minha infância, resumia-se toda minha dependência, vigiada pelos que cuidavam de mim, entre a rua e a entrada de retorno à minha casa. Também da toda minha pequena independência para “fugir” à igreja, ao mercado, à margem do rio e à cadeia, “onde tinha estado Dom Pedro II”, mas se transformado em cadeia, e lá diziam haver presos criminosos, que “pegavam menino desobediente”. Alguns que tinham matado; outros, ferido e a maioria, num momento de raiva, deixou escapar a intenção de matar. Fora isso, os que causaram aborrecimentos aos donos de terra; seminus, com cara de gente pobre, nenhum endinheirado. Longe dali, ameaçavam-nos com uma generalização: todos eram homens maus. Nunca vimos uma mulher presa, dando a entender que elas seriam do gênero das impecáveis, como nossas mães. Ou que, na nossa imaginação, não existiria mulher má.
À tarde, quase anoitecendo, antes de chegar a luz elétrica, o vento, despois do mormaço da tarde, trazia um cheiro de chuva, promessa que não se cumpria. E para nossa surpresa, na recôndita Pilar, que o digam Domício e Frutuoso, ou talvez Lenilda e Zezita, graças ao velho motor da luz, a cidade se iluminava somente das dezoito às vinte e duas. Dessem relâmpago e trovão, as tanajuras saíam das suas tocas, sentindo o cheiro da natureza e o chamado da meninada: “Cai, cai, tanajura, que é tempo de gordura”. Nossa independência crescia, fora das nossas calçadas, seguindo os voos até que elas caíssem.
Explicavam-nos que tanajura não era um bicho, mas uma formiga grande, fêmea, ovada, com asas, saída dos formigueiros, para iniciar novo ninho. E assim chegavam nas nossas calçadas, aos nossos dedos como se fossem pinças, levando-as para uma urupema ou a um saco de embrulhar pão. Tudo isso completava o cheiro do vento, promissor de chuva, as formigas eram sinal à experiência de que o inverno estava para chegar.
As tanajuras ainda aladas escapavam da nossa caça e dos sapos, e voavam a sítios e campos, para, como rainhas, formarem outras colônias. As na urupema, sem asas, iam para a cozinha para serem fritadas, às vezes com óleo e manteiga, ou com toucinho e mais um pouco de banha de porco. Fritas, exalavam um cheiro extraordinário que corria pelas ruas; as outras, menores, eram engolidas pelos cururus, bichos de língua longa e rápida. Prontas, não há manteiga francesa que se compare ao seu sabor. Poderiam ser “tira-gosto” de aguardente ou de cerveja, ou comidas com arroz e boa farinha de mandioca. Manjar divino!
Há até hoje rejeição: “Quem já se viu comer formigas?”. Mas, dessa cultura o mundo está cheio: Na Austrália, prato aborígene; na Colômbia; na China, sobretudo em Xangai, “onde se come tudo que se arrasta, menos tanques de guerra. Ou tudo que voa, menos avião”. E no Brasil, desde quando Dom Pedro II viajava a interiores e zonas rurais de São Paulo, e então “Sua Excelência” não rejeitava tal iguaria. Aqui, em Pilar e em Itabaiana, meu pai me ensinou a saborear tanajura.
Já convencido, em Pilões, conheci, a convite do seu filho Willams Mocotó, o famoso Bar de João Gonçalo, que sabia como ninguém preparar essas guloseimas; comprava-as, trocando por um quilo de carne de charque. Vendia apenas aos que as comessem com prazer, mesmo servindo a alguma autoridade… Já em Ingá, na Fazenda Senzala, Vavá da Luz colhe tanajuras no terraço; sofistica oferecendo espetinhos de tanajuras a turistas e estrangeiros, que vão visitar as Itacoatiaras . Os gringos se maravilham e lembram-se dos seus escargots. Mesmo aos preconceituosos comer tanajura pode ser estranho, mas não exótico, porque é nativo…