Assisti, inúmeras vezes, às cenas, em filmes e teatros, da morte de Sócrates, que nunca deixará de ser uma mensagem para o nosso tempo. A cela, em paredes de rústicas pedras, sempre a estilo de uma prisão grega, arrodeava-se por um plantio de oliveiras, tinha um portão de grade de ferro, mas janelas abertas ao jardim. Insinuado pelos seus discípulos, Sócrates rejeitou a proposta de fugir. Antes, preferiu ele se sujeitar à injusta sentença que o condenava à morte, única partida à sua derradeira viagem, que ocorreria naquela noite, num absoluto silêncio, cortado apenas pelo choro dos seus discípulos. Sócrates se afastou da tentadora janela e andou, com serenidade, ao leito, onde beberia a taça,dada pelo guarda, da mortal cicuta.
Morrer para ele seria como se fosse uma longa viagem, caminhando a travessia para o Hades, onde certamente como lhe era dito, já encontraria habitando grandes heróis, poetas, filósofos, educadores, todos os admiráveis mortos que, em vida, “valorizaram as razões de viver”. Fascinado com a perspectiva desse caminho, Sócrates não lamentava em palavras, mas verbalizava a ideia de partir, cuja definição pela Filosofia o preparou, de modo maduro, para enfrentar a morte.
Aqui, em vários velórios, repetem-se referências a partir para sempre, sem retorno, atribuindo-se sentido sobrenatural a esse termo. Há diversas maneiras de partir, o que nos suscita a curiosidade de como se originou esse verbo. De repente, seria, como sempre busco, do latim ou do grego. Consultados todos os dicionários, não existiam correspondências com qualquer suposto “partire”. Mas, partir como sendo dividir em partes, ou sair do uno ao múltiplo, quebrar a unidade em partes, como uma delas se afastasse do que era antes. Também partir o pão ou melhor repartir o pão, como comunitariamente nos Atos dos Apóstolos, quando repartiam entre si bens e necessidades. Acontece mais beleza nesse partir do que no que diz que vai embora.
A etimologia me agrada ao se interpretarem as palavras, suas origens, transformações e nuances. Partir como ir-se motiva lágrimas, como retornar, alegrias. É partir que se constata nos romances, quando os amores se separam. Em Vidas Secas , Graciliano Ramos imprime um partindo, que é um indo e, ao mesmo tempo, um saindo partindo, mesmo vivos, para não mais voltar, numa caminhada dolorosa de deixar a casa, pelas secas estradas sem abrigo, para procurar um lugar menos doloroso e desconfortável. Em outras situações, o partir é consequência dos encontros que se tornaram desencontros, ao ponto de pai ou a mãe deixar ou carregar consigo filha ou filho.
Amanhã, meu amigo e querido confrade na APL, Milton Marques parte, para o além- mar, a Coimbra, com sua amada companheira Alcione, onde passarão uma estadia de estudos e pesquisas, ensinando-nos, dado seus quilates adquiridos em conhecimento, que estudar e pesquisar nunca é suficiente, razão pela qual assim filosofou Sócrates: “Sei que nada sei”… E que nunca deixamos de aprender até o último instante de definitivamente partirmos. Milton e Alcione partem, embora temporariamente, deixando os amores das amizades, o que se alivia ao sabermos do retorno para prepararmos com eles a entrada do Ano de 2025. No entanto, substituiremos suas ausências através de cartas e bilhetes ou dessas facilidades dos meios de comunicação. Melhor seria que não partissem, mas fazer o quê?
Partir significa que se estende além da chegada, à medida que deixamos lugares, coisas e pessoas, que esperam, mirando o horizonte sobre o mar, o retorno da nave. No imenso palco, antes de partir, bebendo a cicuta, Sócrates volve de novo o olhar pela janela…