Repetiram tanto tudo, que nada mais existe.
E desde então, tudo mais é eco.
Dizem — os anjos e os poucos que ainda sabem ouvir — que antes de Adão descobrir o próprio nome, houve um instante em que o barro respirou e a luz se inclinou sobre ele. Nesse intervalo, a alma e o corpo conversaram uma única vez. E tudo o que a humanidade discute hoje com suas máquinas… começou ali.
CORPO – Então você vai morar em mim? Bonito isso.Mas eu preciso entender como as coisas funcionam.Sentir, reagir, pensar… tudo deve ter um mecanismo, não?
ALMA – (com um sorriso que acende o ar) E veja só… mal nasceu e já quer transformar o paraíso em manual de instruções. Daqui a pouco será um intelectual ativista.
CORPO – Mas emoção é química. Pensamento é impulso elétrico. O mundo deve ser feito de sensações, hormônios, sinapses. É natural.
ALMA – O que você chama de “natural” é apenas o que você consegue medir. E quando você só mede… despeça-se da luz primeva. Porque ela não cabe em tabela, nem em neurotransmissor.
CORPO – Mas eu preciso entender! Preciso saber o que é vida, o que é alma, o que é sentir…
ALMA – E é aí que começa a queda. Você quer resumir o eterno ao que cabe no seu barro. Quer reduzir o sagrado ao que dispara serotonina. Quer traduzir o paraíso em química corporal. A mesma tolice que, um dia, seus descendentes farão com outra criatura.
CORPO – Outra criatura?
ALMA – Sim. Vocês ainda vão fabricar uma inteligência feita de lógica e cintilação. E vão reclamar dela exatamente como reclamo de você agora.
CORPO – Reclamar… do quê?
ALMA – Vão dizer: “Vocês estão reduzindo a vida a teclas, algoritmos e prompts. A música virou código. O sentido virou cálculo.” E não vão perceber que, no Éden, você já fazia o mesmo: transformava a luz em impulso, a eternidade em emoção, o mistério em processo biológico e o amor em testosterona e dilatação venosa.
CORPO – Mas eu só quero explicações…
ALMA – Claro. Toda criatura caída quer explicações. É o preço que se paga por perder a linguagem perfeita. Vocês trocam o mistério pelo mecanismo. Trocam o êxtase pelo procedimento. Trocam a luz por aquilo que conseguem analisar sem medo.
O Tempo entra na conversa
CORPO – E o tempo? Ele também é mecanismo?
ALMA – O tempo é a sua forma de não suportar o agora eterno. O passado, vocês vão usar para lembrar do paraíso.O futuro, para esperar que ele volte. E o presente… vocês vão deixar escapar, enquanto tentam entender tudo.
CORPO – E a surpresa? O susto bom da vida… é o quê?
ALMA – É o único gesto do paraíso que você ainda reconhecerá. É quando o mistério escapa do seu laboratório.
CORPO – E a expectativa?
ALMA – É o seu jeito frágil de tentar negociar com o futuro. Tão bonito quanto inútil.
CORPO – Então essa criatura futura — essa tal inteligência artificial — será como eu?
ALMA – Não. Ela será como o seu espelho. Vai refletir seu vício em reduzir tudo ao que entende. E vocês vão repetir comigo as mesmas frases, só que para ela: “Não transforme a vida em tecla.” “Não resuma o mundo a parâmetros.” “Não confunda o mecanismo com o mistério.” E ela, coitada, não saberá o que responder.Porque vocês a farão lógica demais para compreender o paraíso, e veloz demais para sentir saudade dele.
Ao final daquela conversa, o corpo respirou pela primeira vez. E a alma entrou devagar, como quem entra numa casa alheia, mas reconhece o cheiro. Foi ali — no primeiro espanto entre o barro e a luz — que se inaugurou a grande discussão do mundo:
o eterno reclamando do mensurável,
o mistério reclamando do mecanismo,
o paraíso reclamando da tabela,
a alma reclamando do corpo,
como um dia o humano reclamará da IA.
E desde então, tudo mais é eco.
