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                  Saudade de Vassoura e de outras loucuras  (Damião Ramos Cavalcanti)

 

 

          Tenho saudade de Vassoura montada a cavalo, porque rememoro que, como ela, a minha infância montou numa vassoura como se fosse um cavalo. E, por isso, nunca ninguém me chamou de doido ou de algo parecido, apenas de criança. Também Vassoura exagerava: paramentava-se com broches na lapela e no peito, cruzado por uma faixa, como se fosse uma autoridade; sempre empunhando, numa vara, a bandeira nacional. Porém, jamais teve a loucura de tratar a Bandeira do Brasil como um símbolo de qualquer partido… Nesse sentido, tinha juízo. Perdia a cabeça, quando alguém a chamava de Vassoura, ao que respondia: “Vassoura é a mãe!”. Enquanto isso, seu cavalo, entre carros ou nas calçadas, a respeitava, pisava onde ela queria; dava-lhe altura, assim, distinguindo-a das pessoas que dela debochavam, mas que lhe consentiam passagem e atenção.
          Mesmo fora dessas circunstâncias, o cavalo sempre distingue o cavaleiro, muito mais do que o cavaleiro, o cavalo… Isso imaginava, nos nossos heróis de bang-bang, das revistas de quadrinho ou da inesquecível novela Jerônimo, Herói do Sertão, com seu cavalo dentro do rádio, que nos maravilhava com o belíssimo trote, feito pelos dedos do radialista. Nos 7 de setembro, lá estava o cavalo levando garbosamente Vassoura no desfile, ao passar diante das autoridades, toda patriótica, ancha do seu pomposo nome: Maria Isabel Bandeira de Melo, quando ela própria corrigia o cartório ou o batistério: “Bandeira Brasileira de Melo”.

           Nunca mais vi Vassoura. Saiu de Gurinhém para viver cavalgando de Santa Rita a João Pessoa, distância não muito confortável a cada um de nós. Com o cavalo, numa afeição nietzschiana pelo animal, tentou entrar de Palácio adentro para falar com o Governador João Agripino. Impedida, esbravejou contra a intolerância, como o seu cavalo não fosse inferior ao do imperador romano Calígula, que adentrava ao Senado, puxando Incitatus, tratando-o igual aos senadores, como seu animal tivesse conquistado tal difícil posto no Senado Romano. Mas, Vassoura não conseguiu que seu cavalo entrasse no Palácio da Redenção, hoje transformado em museu, talvez com essa memória.    
         Em quase todas as outras cidades, saudade também de curiosas personagens: Papa-rabo do Pilar, de José Lins do Rego; Maria da Garrafa, de Itabaiana, com um encardido molambo a passar no nariz e um frango no ombro esquerdo, na Igreja ou na Rua do Carretel.  Em Guarabira, Chico do Baita que de tudo sabia; o “cientista político” Pai Herói e Salete Cobra, sempre à espera de um enterro para acompanhar o caixão até a última pá de terra; Galinha Baleada e Ferrugem, de Cajazeiras; Açoite, de Piancó, rodando uma pedra na ponta do cordão para “tirar fino” no queixo, com insistente desejo: “- Tomara que bata…, tomara que bata…”.  O campinense Engole Trave, empinado e engravatado, gritando palavrões a quem o mandasse  girar a cabeça; ou Biu do Violão, louco cover de Roberto Carlos em Campina; por lá desfila Pedro Cancha, modista de grife, o primeiro macho campinense a vestir saia para provar que “antes de tudo, a moda”, mesmo enfrentando preconceito.
          Paranormais inteligentes, como o poeta Caixa D’água, sempre de paletó branco, vendendo seus livros, ou o tribuno Mocidade, de sábias ironias. Pão de Bico, Pegueite, Garapa ou Davi, o dono do mundo, são imortais, folclóricos, alegria da nossa cultura. Insultados e amados pela cidade, como era o bobo da corte que divertia reis e rainhas. In memoriam, o cavalo de Vassoura morreu ao lado do túmulo, em Santa Rita, onde jaz sua fiel cavaleira.
 

Damião Ramos Cavalcanti

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