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Pelos Sertões em busca do passado II (Thomas Bruno Oliveira)

Rio São Francisco - TB

Rio São Francisco – TB

DEIXANDO O POÉTICO RIO São Francisco, caminhamos pelas ruas de Petrolina que se preparava para o repouso dominical. De longe avistamos altas torres de uma igreja e descobrimos um grande templo católico construído em estilo neogótico com imponente fachada e um grande conjunto de vitrais, é justamente a Catedral do Sagrado Coração de Jesus que no próximo dia 14 de novembro fará seu centenário. Na praça, observando suas linhas e detalhes, provamos bolinhos de acarajé vendidos à moda de pipoca em saquinhos de papel, um pé na Bahia? É logo ali.

 

Catedral do Sagrado Coração de Jesus, Petrolina-PE – TB (Clique na foto para ampliar)

 

Não posso olvidar os cachos de uva que literalmente estouramos na boca no município de Lagoa Grande, pertinho de Petrolina, na vinícola Rio Sol que atualmente é reconhecida internacionalmente pela qualidade de seus vinhos e espumantes. Enquanto o guia se esmerava nas explicações, Juvandi, Dennis e eu andávamos entre o parreiral atônitos com aquela fartura e a proporção de tão saborosas uvas.

 

Em Lagoa Grande-PE, vinícola Rio Sol – TB (Clique na seta à direita para ver as fotos)

 

Pé na estrada, o próximo destino foi o município de Remanso, já em terras baianas. Vencemos um a um os 207km de distância fazendo um contorno no extremo norte da extensão alagada pela barragem de Sobradinho. De tempos em tempos, parávamos para observar aquele mundão d’água e o contraste de cor com a vegetação acatingada e o reboco desbotado de algumas construções, o clarão azul e branco do céu e a escuridão do asfalto. Tudo ia sendo visto e registrado, as vezes pela objetiva, outras – diga-se de passagem, a maioria ­– pelo olhar contemplativo. Cavalos, bodes, aves, abelhas e toda sorte de viventes eram bem observados. Um jumentinho de nome branquelo ajudava Seu João a carregar uns sacos de farelo e Seu Armando só lembrou dos Cariris Velhos da Paraíba.

 

Remanso-BA – TB (Clique na seta à direita para ver as fotos)

 

Nos banhamos em Remanso-BA e nas proximidades do cais, bem depois do meio-dia almoçamos uma saborosa peixada. Sem demora, saímos da última escala programada com destino a São Raimundo Nonato-PI onde está sediado a Fundação Museu do Homem Americano – FUMDHAM e tomamos uma estrada forrada de um barro tão seco e compactado que parecia um concreto até encontrarmos um tímido asfalto. Em quase linha reta, com sol nauseante, vencemos pouco mais de 100km até darmos com as primeiras esculturas gigantes de animais na entrada de São Raimundo Notato-PI. O cansaço era evidente e com o pôr do sol ia também a última nesga de energia. Momento de buscarmos uma pousada em que ficamos por quase três dias.

 

Com tudo acomodado, ao lado do amigo Dennis, ainda deixei o hotel para ver a cidade, caminhar por suas ruas. Início de semana, pouca gente na rua; clarões nas janelas (e os seus sons) denunciavam a audiência das telenovelas. As poucas pessoas que repousavam nas calçadas, olhavam um pouco desconfiadas para aquelas presenças desconhecidas que éramos nós. Naquelas descidas e subidas, buscávamos ver algumas coisas que remetessem ao Parque Nacional Serra da Capivara algo mais além do batismo de hospedarias e restaurantes. Por grades que estavam cerradas, vi nas paredes do mercado painéis com inscrições rupestres e dentre elas, uma foto exclusiva da Pedra do Ingá, o que nos chamou muita atenção. Do horizonte pouco se enxergava, já que até a lua nos pareceu tímida não iluminando os arredores. As serras só puderam ser vistas com detalhes na manhã do dia seguinte.

 

Viagem ao Piauí – TB (Clique na foto para ampliar)

 

Após um merecido descanso, acordamos cedo. O café na pousada foi reforçado, afinal, o dia seria de longas caminhadas. Nós brasileiros caprichamos no cuscuz com ovo e guisado bovino e o seu molho – a “graxa” – bem temperada e com uma pimentinha. Já os franceses, abusaram dos pães com queijo e embutidos. Tapioca? Foi o grand finale com uma boa xícara de café puro. Com tudo pronto, fomos ao Parque. Para a visitação, deveríamos contratar um guia para cada sete visitantes. Como estávamos em dez, foram necessários dois (um casal muito simpático) e a caminhada pelas trilhas por entre os sítios arqueológicos necessitava dessa atenção para uma melhor compreensão do contexto e das especificidades de cada lugar.

 

O carro nos conduzia por estradas adentrando uma mata de caatinga bem preservada. Dependurado na janela, ia a cada olhar me encantando. Buscava naquele cenário inóspito alguma correspondência com meu Mundo-Sertão. As semelhanças e em que mais diferiam. Algo importante de ser salientado é que cada palmo daquele lugar foi pisado por Niède e sua equipe e o quanto todo o ambiente era pensado no tocante a pesquisa e visitação, o que ainda carecemos por aqui por mais esforços que existam. Pela entrada principal do Parque, chegamos a Toca do Boqueirão do Pedro Rodrigues (lá é usual o nome toca, aqui é loca ou furna, todas essas são nomenclaturas para um abrigo sob rocha) e iniciamos um mergulho no passado pré-histórico. Pinturas iam surgindo sucessivamente em uma vivacidade impressionante.

 

No Parque Nacional Serra da Capivara – TB (Clique na seta à direita para ver as fotos)

 

No Sítio do Meio, visualizamos um trabalho de escavação em andamento e o Prof. Juvandi conversava com uma colega arqueóloga. Vimos montes de sedimento sendo retirados centímetro por centímetro em várias quadrículas por alguns trabalhadores locais e alunos estagiários. Uma espátula em madeira, que parecia rudimentar, era a ferramenta apropriada para aquele grau de compactação do solo. Seu formato e peso só demonstra o quanto cada trabalho arqueológico possui sua especificidade. Daquela conversa entre arqueólogos, eu ouvia  atentamente e buscava relacionar aqueles testemunhos ancestrais com tudo que eu já tinha visto durante anos e aproveitando a oportunidade de aprender sempre mais.

 

No Parque Nacional Serra da Capivara – TB (Clique na seta à direita para ver as fotos)

 

Seguindo em caminhada, conhecemos a formação denominada de Pedra Furada bem no meio do boqueirão, uma parede pétrea com um grande orifício, um óculo insculpido pela natureza. Ali a “ficha caiu” de verdade e tivemos a certeza da imersão que nos tomava. Olhei atentamente ao meu redor, vi alguns visitantes e os meus companheiros de viagem, nem sei descrever o tamanho daquela emoção. Por uns momentos (ou melhor, por vários) desprezei a câmera, pois ela não atendia a expectativa de resumir o que enchia meus olhos. Não que fosse a intenção fazer um “simulacro do real” ou um “espelho da realidade”, ou mesmo como defendeu Bóris Kossoy, uma “segunda realidade”, mas que a minha retina deveria ser a protagonista e aquela contemplação é o que realmente era necessário por desenhar em minha mente de maneira tão forte e duradoura como aqueles pigmentos usados nos abrigos rochosos por nossos ancestrais, de modo que pululam inscrições rupestres ao simples fechar de olhos, isso passados tantos anos.

 

No Parque Nacional Serra da Capivara – TB (Clique na foto para ampliar)

 

Enfim, chegamos ao Museu do Homem Americano, uma construção imponente ao mesmo tempo camuflada em meio a mata, paredes grossas revestidas de pedra, se assemelhava as rochas que estavam por toda a parte. Após a conversa com um funcionário, Prof. Juvandi nos informa que Niède não poderia nos receber, para nossa inteira tristeza. Olhei bem para ele e vi o que ele não conseguiu esconder. Nos conduziu até o interior do Museu dizendo que a aguardava e que ele iria nos receber sim. Mais um chiste (para nosso alívio!), dessa vez por nós desejado! Aguardamos Niède, o grande nome da arqueologia brasileira. A coleção museológica ia sendo vencida até que Juvandi nos chama. Não sabia para onde ir, o que falar, estava nervoso até que ela com bastante naturalidade nos saúda. O encontro foi breve, mas o suficiente para ser inesquecível. Com gentileza e uma grandeza no falar, contou-nos um pouco do Museu da Natureza que estava em construção e uma breve história das décadas de estudo e descobertas no Piauí. Disse acompanhar nossa pesquisa na Paraíba e por trás da seriedade, nos sorriu e incentivou a continuar: “Continuem! Nosso passado ancestral depende de nós”. Sem dúvida, foi um dos grandes momentos que vivi, valeu a pena!

 

No Parque Nacional Serra da Capivara – TB (Clique na seta à direita para ver as fotos)

 

No Parque Nacional Serra da Capivara – TB (Clique na seta à direita para ver as fotos)

 

No Parque, ficamos até o fim da tarde e pudemos conhecer o trabalho da cerâmica e outros detalhes incríveis. No dia seguinte, sem pressa, tomamos café e nos despedimos de São Raimundo Nonato. O retorno à Campina Grande foi por um caminho bem diferente da ida. Subimos o Piauí, cruzamos todo o Ceará até acessar o extremo oeste da Parahyba. Passamos por inúmeras povoações, muitos recantos que eu não conhecia e ali estavam na linha do horizonte ou escritas nas placas. Ainda no Piauí, passamos por São João, Veados, Umbaúba, Santiago, Negro da Mota, Poço da Pedra, Mocambo, Mombaça, Mandacaru, Tamboril e muitos desses topônimos davam dicas incontestes da ancestralidade do homem. Chegamos na divisa com o Ceará e nos arranchamos na cidade de Fronteira. Não perdi a oportunidade em dar umas voltas, ver alunos nos arredores das escolas, praças e campinhos de areia donde garotos corriam atrás da “pelota” em busca do gol. O simpático dono da pousada, animado com a presença dos visitantes, conversou conosco durante horas, onde contou um pouco dos costumes da região e muito da história empresarial dos grupos Frigotil (de Timon-MA) e Armazém Paraíba, ambos “dos Claudino” com estabelecimentos em municípios de quase todo o Nordeste. No caminho, ainda fomos pedir a benção ao Padre Cícero no Juazeiro do Norte, comi uma coxinha onde a segurei pelo osso da coxa de frango, coisa que Papai me dizia e eu via pela primeira vez em Missão Velha. Ainda estivemos no Vale dos Dinossauros e em muitos outros lugares que mais umas duas ou três crônicas dariam conta de uma amostra de minhas impressões. Quem sabe eu não fale dessas experiências em outro momento?

 

Na volta… – TB

 

Do Piauí voltei impressionado e agradecido pela oportunidade de conhecer o grande legado que Niède Guidon deixou para o Brasil e para o mundo. Ela merece todo o reconhecimento e respeito. Hoje, sem dúvida, é uma estrela no céu de nossos sertões e brilhará para todo o sempre.

 

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