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 Padre Ernando também morreu (Damião Ramos Cavalcanti)

          A mais longa ansiedade, na vida, é a morte… Pode ser também a mais extensa certeza, contudo, biblicamente, inesperada. O Padre Ernando, desde seus tempos de seminarista, repetidamente, gostava de citar Mateus (21:13): “Portanto, vigiai, pois não sabeis nem o dia, nem a hora”. Em determinadas circunstâncias de perigo, sentimos medo, sua proximidade, sinais de que tal dia e tal hora se avizinham; aproximam-se como é o caso da Morte, no filme O Sétimo Selo, de Bergman: a Morte chegando tão perto do protagonista, ao ponto de jogar com ele uma fatídica partida de xadrez, dialogando sobre os xeques-mate da vida. É assim, quem nasce, mais cedo ou mais tarde, estará num caminho que findará; conte ou não conte seus passos. Sem saída, haverá o derradeiro xeque-mate.
          Foi assim, ele demonstrava não se assombrar com tal perspectiva, refletindo que quem tem fé enfrenta a Morte com naturalidade, o que podemos definir como maturidade espiritual. Contudo, Padre Ernando também morreu. Vivos, encontramo-nos nos anos 60: eu, interno no Seminário Arquidiocesano, instalado no complexo da vetusta Igreja São Francisco; ele, semi-interno, vindo e voltando, diariamente, à larga casa de Dona Carminha e do seu Teixeira, seus adoráveis pais, na antiga Rua das Palmeiras, hoje, Rodrigues de Aquino. Vez ou outra, convidava-me a desfrutar dessa feliz convivência, nessa numerosa e linda família, onde dividia com sua irmã Nenen a liderança dessa alegria, constantemente abençoada pelo seu “Tio Padre”, Alfredo Barbosa, o reverendo então Pároco de Cabedelo. No fim de 1965, fomos para o Seminário Regional de Camaragibe, quando ele revelou a beleza dos seus talentos artísticos, talhando em madeira o altar frontal da capela do Seminário Regional, admiradíssima também pelos artistas de Olinda, que reconheciam seu talento. Hoje, a capela existe na Sede da CNBB, em Recife.
          Em setembro de 1966, parti para estudar Filosofia, na PUG, em Roma. Dois anos depois, chega Ernando com sua pequena maleta, cheia de coisas simples e sua talhadeira. Ernando sempre externou, através de suas roupas e trajes, sapatos e alpercatas, sua simplicidade interior. Gostava, sim, de rito e liturgia, mas apenas quando se vestia de cota, alva ou algum colorido paramento. Bati quase toda Itália com ele, lisos, pedindo  “auto-stop”, de carro a caminhão, nas autoestradas, quando economizávamos liras de passagens de trem e quando não dormíamos em casas religiosas, pernoitávamos nas estações ferroviárias, dois ou três dias, como foi o caso para visitar, palmo a palmo, Bologna, e conhecer sua antiga Università, que disputa, com a Universidade de Salamanca e a Sorbonne de Paris, o título da primeira universidade da Europa. Durante as férias mais longas, de três meses, tivemos experiências operárias, nas fábricas alemães, como foi o caso do nosso convívio em Wassenberg, aperfeiçoando o nosso alemão e ganhando alguns marcos para voltar a “viver” com boa pizza e bom cinema em Roma. Tenho que lamentar não poder relembrar tantas aventuras e lembranças que nos formaram um ilustrado e colorido weltanschauung.
          Sua idade e sua dedicação à pesquisa, no Instituto Histórico, onde era conceituado membro, comprovavam sua disposição de viver, o que lhe prometia mais anos de vida. Por isso, surpresos, seus amigos choraram sua morte inesperada. Vi retratos do seu sepultamento, do coche fúnebre à sepultura. Dentre duas dezenas de pessoas mascaradas, apenas distingui seus irmãos, não reconheci seus amigos de sempre, a grande maioria ficou impedida de comparecer pelo isolamento, contra o contágio que o vitimou. Qualquer um de nós poderia ter organizado uma despedida melhor do que essa forma como Ernando saiu dos nossos caminhos. Não se compreende a morte do bom e afetuoso Ernando, de espírito agudo, filosoficamente irônico, mas permanentemente um coração amigo. Parou o coração, mas não a amizade…                  

Damião Ramos Cavalcanti