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             O silêncio dos finados depois de mortos   (Damião Ramos Cavalcanti)

 

 

          O Dia de Finados, em 2 de novembro de 2023, passou e não volta mais. Mas, os finados não passaram, tampouco passarão, foram-se para não mais voltar. Quem morre se enclausura numa morada quanto ao tempo, de modo indefinido, ou seja, não volta a viver, porque ninguém morre duas vezes. É como se estivesse, humanamente falando, num quarto escuro, sem portas, sem janelas, sem algum buraco no piso ou no teto. Contudo, espiritualmente falando, tais paredes são transponíveis pelos espíritos, ultrapassam as mais grossas, entram e saem das celas mais hermeticamente fechadas, por qualquer lado do quadrado, sem precisarem de habeas corpus; para as almas, tudo é igual, tanto faz construírem alcovas ou corredores, as sepulturas não nos sepultam… Gozam os mortos, quanto ao poder de ir e vir, sendo ou não constitucional, de absoluta liberdade, contudo, quanto às ações humanas, os mortos nada mais podem fazer, o tempo de fazer é em vida, por isso, carpe diem! Não quero desestimular quem já morreu, tampouco tirar-lhe a fé, ele se desprendeu, sem dieta, do peso do corpo, e ficou mais leve do que uma pluma, invisível ou visível quando quer aparecer, no máximo, torna-se assombração.
         Mas, soltos, muito soltos, fora do quarto escuro, quanto à ação, se desejam corrigir coisas do passado, continuam no quarto escuro, sem tal liberdade, que só é possível aos vivos que são, nesse sentido, perdulários do tempo. Os humanos vivos têm esse defeito: não se convencem facilmente de que, aqui e agora, precisam de correção.
          No Dia de Finados, eles são amores silenciosos, apenas motivam recordações, saudades, ações, lembranças, rezas ou orações, sem muita alegria como se festeja o Dia de Todos os Santos. Já os falecidos, santos ou não, normalmente lembram a data em que morreram, subtraindo-a da data em que nasceram, para se medir sua curta ou longeva existência. Depois da centésima, a comemoração sofre esquecimentos, a não ser se o lembrado é um algum vulto, na sociedade onde viveu, e tenha assumido atitudes pelo bem comum, enquanto se destacou ou até tenha morrido como herói.
          Algumas culturas, especialmente orientais, choram muito quando morre alguma criança ou algum jovem que, no limiar da vida, teve sua vida tolhida, interrompendo-se  bruscamente o caminho da vida, antes de atingir o natural fim da estrada, sem experimentar coisas do futuro. Como se fosse direito da juventude viver mais ou que a sociedade tivesse necessidade dela por mais tempo. Tal sentimento diminui à proporção que a idade avança em relação aos que já viveram muito, que já estão próximos do fim do caminho. Quanto a isso, a natureza sabiamente demonstra os quilômetros contados dessa estrada, dando sinais de que o caminho, brevemente, está chegando ao fim. A esses, os orientais, brindam a longevidade usufruída, rememorando seus feitos e cantando loas às memoráveis existências. Assim, no final do filme Sonhos, de Akira Kurosawa, vê-se um festivo cortejo que realiza o féretro de uma japonesa de 102 anos, com essa explicação.
          Os mortos, inertes, não reagiram no seu Dia dos Finados, são amores silenciosos, que não voltam tampouco para nos contar como aconteceu a experiência da morte, como teria sido o advento ao outro lado da vida. Permanecem em silêncio, deixando tal conhecimento para quando experimentarmos a nossa vez. Certamente, já noutra dimensão, não terão opiniões, nessa linguagem divina, já que expostos à sua nudez espiritual, diante das certezas e dos verdadeiros juízos sobre o mundo em que viveu. Sem incertezas, os mortos são silenciosos, deixando aos vivos a tarefa da busca. Lamentamos que nem todos os vivos amam o silêncio, que nos confronta, olho no olho, com a verdade do nosso ser. Para ouvirmos o silêncio, é preciso que nossas vozes se calem…

Damião Ramos Cavalcanti