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    O que não teria de acontecer ( Damião Ramos Cavalcanti )

    O que não teria de acontecer ( Damião Ramos Cavalcanti )

 

            O que não teria de acontecer

          Há coisas que parecem acontecer, inesperadamente, por si sozinhas; como também decidissem sozinhas acontecer, fazendo de conta que nós não existíssemos, como elas fossem surpreendentemente causa e efeito do fenômeno, deixando-nos confusos, sem sabermos de onde viriam tais coisas. Mesmo surgindo bem perto de nós, na nossa cara, naqueles momentos ou naquelas horas, quando menos se espera. Realçam quando negativamente nos atingem, e geralmente, no mínimo, nos afetam. Tornamo-nos, então, partes dos seus efeitos. Assim, também sujeitos a opinar sobre elas, sem querer, valorizando-as, dando-lhes importância, mesmo que elas não representem alguma necessidade ou valor para isso.
          Não são corriqueiras, acontecem fora da normalidade, configurando o requinte de surpresa. Haveria nisso alguma fenomenalidade? No caminho dos nossos estudos, aprendemos, basicamente, que o fenômeno é aquilo que, “de aparência sensível”, opõe-se à realidade, da qual se origina e é manifestação. Contudo, sempre com característica paradoxal, insólita, com a qualidade de ser diferente. Vulgarmente, o termo tem se aplicado até a jogador de futebol, que não estranhem o emprego simplório da palavra, os teóricos da fenomenologia, como Kant, Spencer, Heidegger, Hobbes, Husserl e até Hegel, que tentaram definir o que seja um fenômeno ou o que merece ser adjetivado como fenomenal.
         Há coisinhas intrigantes, como o parafuso, que das nossas mãos, rola metros e metros, e esconde-se num único buraco da calçada, por onde mal ele pode passar. Foi quando, depois de procurar por muito tempo, o ciclista me disse: “Se eu quisesse acertar, com esse parafuso, aquele buraco, jamais acertaria…” Há eventos mais complexos, sobre os quais fica difícil explicar o porquê do acontecimento. E quando a explicação fica difícil, geralmente se dá a mais fácil possível, até chegar ao nível da bobagem, da asneira ou da tolice. Geralmente essas coisinhas são sem vida, mas parecendo “se moventes”; não têm desejo, mas parecem agir contra nossa vontade, como a boa cortiça se romper, exatamente na hora de se abrir o bom vinho da festa.   
          A partir da queda de um avião até a da supracitada do parafuso, destaco, na excelente obra de Itamar Vieira Junior, Torto Arado, o caso da língua decepada por uma faca, que vivia prudentemente escondida pela avó. Como explicar a língua acidentalmente cortada? O porquê é, no romance, por conta do direcionamento do enredo, mas isso acontece dentro e fora das obras de ficção. O avião caiu e a família do único passageiro que morreu insistiu que ele não viajasse, como se tentasse evitar o que não teria de acontecer. Tal assunto se espalha como algo altamente curioso, inclusive alimentando a sugestão: Quando uma voz, dentro de você, disser que não vá, não vá. Retruca-se, tirando-se do bolso, o conceito de destino, que é amplamente de conhecimento erudito e popular: “Quando tem de acontecer, acontece”. Isso também só é dito depois que acontece… Melhor acreditar que as coisas, que existem, geralmente, acontecem, mesmo do modo ou das maneiras mais estranhas. José Américo de Almeida ameniza a interferência do destino, dando-lhe probabilidade ou não, já que a dita força é relativa às circunstâncias: “O que tem de acontecer tem muita força”. A lógica da probabilidade é o que nos salva das radicais certezas…

Damião Ramos Cavalcanti