O cheiro do café coado na fazenda do meu avô
Era o amanhecer do dia, na fazenda de casa alta. Fogão de lenha, redes armadas nos quartos e nas salas. Os passos firmes de meu avô, eu ouvia na madrugada, em direção à cozinha. Eu que acordava com o amanhecer, para ir ao curral tomar leite, presenciei essa cena que descrevo agora, com os olhos banhados pela lembrança e marejados pelas lições de um sertão, de um amor, de uma morada, de uma vida.
Só no cheiro que vinha da cozinha, da lenha que queimava no fogão, já existiam fragrâncias e aromas no ar – o silêncio só era quebrado pelo encostar do bule de ágata na boca do fogão de lenha. Era o respeito a quem ainda dormia, era o carinho que prevalecia. Pedro Marques, “Pedrinho”, como era chamado por todos, desperta em mim, nesse nascer do dia, várias lições a serem observadas: respeito, zelo, amor, partilha, família.
Voltando à casa da fazenda outro dia, vislumbrei toda a estrutura ainda lá. Fechando os olhos, remeti-me ao tempo de menino, e lembrei de meu avô e sua atitude… daí, entendi, cada vez mais, por que os trabalhadores o respeitavam tanto, por que a mesa sempre estava farta, por que no curral sempre havia conversas e risadas. Era Pedrinho, assim chamado carinhosamente por Judith, minha vó, que se fazia gigante, num solo árido sertanejo – gerar empregos, plantar e colher frutos bons.
Era Seu Pedrinho: suas atitudes do bem, do riso largo, do papo amigo; da conversa e prosa transformadas em riso; do planejamento da próxima colheita; do resistir do rebanho na seca perversa; na preocupação ambiental para não queimar a serra na próxima estiagem; da limpeza do açude; da pureza da água na cacimba aberta, para abastecer a casa; do agradecimento, em oração, à devoção passada de pai para filho.
Entrar no quarto da escola e me defrontar com a colheita do arroz, que pareciam serras por toda a casa; dos fardos de algodão ensacados, esperando o caminhão para carregar; a batata colhida na beira do açude, cozinhada e servida no café da tarde; ou ainda os roletes de cana, mangas, laranjas e goiabas, trazidas por meu avô para todos que estavam no alpendre, e a folia dos netos e netas.
Quantos contos e cantos, personagens como Gurmecindo, Tio Bosco; “A Pedra de Onora”; a Invasão dos cangaceiros na fazenda; a queijeira de Zé Miúdo; a eleição para vereador em 1962, pelo Partido Social Democrático, onde obteve 125 votos – tudo isso era a cadeia produtiva que cercava e movia a riqueza cultural ali existente.
O café coado… lembro dele atravessando a casa e vindo tomar o café, sentado numa cadeira de balanço no alpendre. Era hora que minha vó acordava e os dois, nesse olhar matutino, eternizavam o verdadeiro e único amor, o que resiste, enfrenta adversidades, que é de verdade, que é amor. Parado em minha memória, corro em direção aos potes para tomar água e ver na paisagem da porta/janela o açude e a serra, que pintam em aquarela a história desse amor.
Como hoje entendo, como meu pai Carlos Dunga disse que, na partida de seu pai, não mais ouviria a música Luar do Sertão. Escutando a música, deparo-me com a estrofe:
“Ó que saudade do luar da minha terra
Lá na serra, branquejando folhas secas pelo chão
Esse luar cá da cidade, tão escuro
Não tem aquela saudade do luar lá do sertão
A lua nasce por detrás da verde mata
Mas parece um sol de prata prateando a solidão
E a gente pega na viola que ponteia
E a canção é a lua cheia, ao nascer do coração
Coisa mais bela neste mundo não existe
Do que ouvir um galo triste no sertão se faz luar
Parece até que a alma da lua é quem diz: canta
Escondida na garganta deste galo a soluçar
Ah, quem me dera, eu morresse lá na serra
Abraçado a minha terra e dormindo de uma vez
Ser enterrado numa grota pequenina
Onde à tarde a sururina chora a sua viuvez”.
Eh, Seu Pedrinho, meu avô, gosto de fazer o café quando em vez… queria que você tivesse tomado meu café, junto a todos os seus netos. Saiba que convidarei Maria Cecília, minha neta, para viver tudo isso quando ela chegar. E poder dizer: eu tomei do seu café!…
De um Dia de Domingo
Carlos Dunga Jr 12/03/23