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O celular não a substitui


 Não sei se leitor era do tempo, em que se andava com uma foto no bolso, mais precisamente na carteira, às vezes sem dinheiro, mas guardava, em preto e branco, a preciosidade da foto, vista hora ou outra pelo apaixonado e, talvez, mostrada aos confidentes ou a algum amigo, num sorriso de satisfação: “Tenho também quem goste de mim”. O enamorado usava mais disso nas suas viagens, afastado de casa, longe da amada, ao estar num internato, servindo ao exército ou trabalhando fora, como os da Rede Ferroviária ou do Banco do Brasil. Olhar a foto era, de repente, voltar à cidade do seu amor, à frente da casa onde estaria ela na janela ou esperando no terraço, em que haveria acontecido tantos inesquecíveis beijos. A fotografia produzia essas substituições, das quais o celular não chega nem perto.
Não existe filme de guerra, que se preze, em cujo roteiro não haja soldados, tristes porque deixaram suas casas, guardando sentimentos e lembranças, num tamanho de papel que pudessem levar consigo, a qualquer momento, a qualquer lugar da batalha, às circunstâncias mais perigosas, fossem de rajadas de metralhadoras, de tiros de canhões ou de bombardeamentos. Lá estava o soldado, fugindo apenas do horror para se abraçar com o retrato. Escondido, com medo, ele e a foto, como se fossem apenas duas pessoas, olhando-se, dialogando e ele prometendo retornar para casa, logo que acabasse aquele inferno. Quase de mãos dadas com ela, como Dante caminhou com Virgílio, pelas entranhas do Inferno. As cenas dizem que o soldado sempre pôde alternar-se entre a decisão de matar e o relaxamento da poesia, mirando intensivamente a foto, em manifestações de admiração. Em algum buraco, casamata ou proteção dos escombros, só havia duas coisas: ele, ela e a foto.
 As armas se modernizam para serem mais vendidas; ficaram matando muito mais com rapidez e precisão, mas aquela fotografia, meio amassada de tanto passar em mãos, é a mesma, num valor incomparável, como se fosse um poderoso e sagrado amuleto do soldado na luta. Às vezes, molhada pela torrencial chuva ou fria pela neve, mas nítida aos olhos e quente às mãos do diligente soldado. Em outras situações, a foto está viva, suja de sangue, e a amada vendo o amado morto, ela convencida de que ele não retornará mais aos seus braços, como prometera. Hoje ou atualmente, russos e ucranianos, sendo proibido o celular, certamente carregam a bendita foto no bolso, não diferente do que faz o caminhoneiro, do Norte ao Sul do nosso país. Sim, ele e a foto…
 Ninguém consegue explicar por que sonha essas coisas. O viajante, quando tira, duas ou dez vezes, a foto do bolso, cuidadosamente para que ela não se estrague, lembra-se de fatos como eles fossem ontem ou agora. Recorda a beleza da pessoa amada, falando ou cantarolando as canções que mais lhe agradavam. É como se estivesse também diante de um espelho. Na foto, a pele suave, beijada devagar. Vê-se a praia, bem mais feliz do que aquela de Dunquerque. A foto é pequena, mas nela cabem, o que o celular não substitui, muitas lembranças.

Damião Ramos Cavalcanti