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Blog do Vavá da Luz

Não era minha! (Thomas Bruno Oliveira)

 

Não era minha!

 

Devim, Joel, Ângelo, Tuca e Thomas (em pé). Tião, André Lambu, Meu, Manéo e Boquinha (agachados) em 1993

 

A primeira medalha que ganhei foi em um torneio de futebol na minha rua. Formava trio com Joel no gol e Ângelo (in memoriam) na linha como se dizia. Eram dois na linha e um no gol. “Anjo” era o mais arisco, como se denomina no futebol aquele sujeito franzino e bem ligeiro, astuto que resolve jogadas mais com a agilidade do que com a técnica, ele possuía as duas. A premiação do campeonato foi toda arte do velho amigo Pií que, diferente de nós, cruzava a passos largos o caminho entre adolescência e juventude. Éramos bem mais moleques.

 

O troféu era formado por duas bases de madeira separadas por duas colunas iguais de cabo de vassoura. No centro e no topo, o fundo redondo de lata de óleo completava a obra de arte. Antes disso, o adorno de metal era decorado com marretadas em prego fazendo letras e símbolos pontilhados com os buraquinhos. E a medalha? Novamente o fundo da lata redonda “salada” com furos indecifráveis. Na ponta um pedaço de linha dez e aquele objeto de glória poderia ser pendurado no pescoço. Passamos o dia todo exibindo a honraria. O medo que Mamãe tinha era de nos cortarmos. O artífice Pií, então, recolheu as medalhas e entre marretadas e lixadas na calçada, evitou que o objeto se tornasse cortante. Mas porque logo hoje me lembrei desse laurel juvenil? É que remexendo em velhas gavetas, possuídas senão pela saudade, encontrei um adesivo de um time de botão que me recordou outra medalha. Vem cá que vou te contar.

 

Entre 1993 e 94, mal completados dez anos de idade, vivi intensamente o cotidiano da mercearia familiar. A Bodeguita me proporcionou crescer junto a meus pais e me deleitando de tudo que havia de melhor na vizinhança. A rua de terra batida era sortida de crianças e a traquinagem corria ao sabor do vento. Papai exercia uma liderança na rua e a televisão da bodega era disputada entre novelas e jogos de futebol. Sempre havia algum vizinho a assistir. Certa vez, ao ver a criançada toda e até jovens brincando de time de botão, Papai resolve fazer um campeonato.

 

A lembrança se metamorfoseia em fantasia percorrendo a mente e trazendo caros afagos ao coração. Concordo com Rubem Alves quando diz que “As fantasias da infância são as memórias transfiguradas pela saudade”, e que saudade! Pareço reviver aquele momento: Papai me leva com ele ao centro e após breve caminhada da parada de ônibus até a rua Venâncio Neiva, entramos na loja esportiva ‘A Bola’, o templo sagrado das camisas oficiais, chuteiras e troféus maiores do que eu, acreditem! E lá Papai comprou uma medalha dourada, reluzente com os dizeres ‘Honra ao Mérito’. Dali subimos a rua e fomos até Seu Alcides do Alicate (perto do Bar do Genival) distinto e popular senhor que amola alicates, enche canetas tinteiro, isqueiro, vende pilhas e grava palavras em artigos de metal até hoje, são quase cinco décadas de labuta. No verso da medalha gravou a frase: 1º Campeonato de time de botão da Bodeguita.

 

A medalha de honra ao mérito

 

Com dez anos, eu era um dos mais jovens a participar. Havia meninos de até dezoito anos e também dois adultos, um deles o dono de um time de botão de baquelite que se distinguia dos demais que eram todos de plástico; uns mais duros, outros menos. O campo em cima de caixas de cerveja tomou a calçada, à sombra de um frondoso pé de algaroba e a meninada assistia os duelos como podia. No campeonato, minha primeira partida foi contra Didi de Judite, um vizinho mais velho uns cinco anos; empatamos em 3×3. No segundo jogo, meu Treze perdeu para o Flamengo (justamente o de baquelite) por 2×1 e fui eliminado da copa.

 

Um garoto da rua transversal, Júnior, jogava com o São Paulo. Tímido e bastante discreto, conhecia os meninos, embora não tivesse grande amizade com todos eles. Então Junior foi ganhando um a um os jogos e acabou chegando a semifinal contra Marçal, esse já tinha uns 20 anos, era dono de um timezinho onde alguns de nós jogávamos vez ou outra no campo da Fábrica de papel Ipelsa (com bola de couro e não das nossas dente-de-leite). Tinha o jeito e a fama de “brabo”, e logo após o término da partida, Júnior foi ameaçado e correu para casa, parte dos meninos correram atrás. Na esquina, o interceptaram e fizeram uma roda, mantendo Júnior no centro por alguns instantes à base de empurrões e pilhérias. Papai, que estava despachando na mercearia, não viu de imediato, até que eu bastante apreensivo, a chorar, o avisei. Ele correu até lá, retirou Júnior da roda e o acompanhou até em casa. Bravo, disse que estava encerrado o campeonato, me dando a medalha de presente.

 

A corrente para pôr no pescoço era de pequenos aros dourados. O metal era bastante reluzente, lembrava a medalha de ouro das olimpíadas. Arrodeado dos amigos, todos cabisbaixos com o abrupto fim do torneio, ainda pensei em pô-la no pescoço, mas ora, não era minha! Guardada em minhas bugigangas, qualquer dia a encontro e revivo aqueles tempos…

 

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Publicado na coluna ‘Crônica em destaque’ no Jornal A União de 24 de abril de 2021.