Na Serra do Maracajá
Vovô tinha lá seus dezesseis anos e já era dono de si e do mundo que conquistava. “Tudo que a gente vive é para nos ensinar, meu filho”, frase repetida com o orgulho de quem viveu intensamente seus quase noventa e cinco anos. Sendo o mais novo de uns vinte irmãos, demorou um pouco a sair, mas quando o mundo virou seu destino, pisou firme nele e o corolário disso tudo era percebido em apenas alguns minutos de prosa, em alguns de seus gestos, velho experiente e sabido.
Eu admirava muito o seu semblante, aqueles ombros curvados denunciara uma vida inteira de trabalho, de suor e dedicação na criação de filhos e netos. O chapéu de massa, a camisa e calça social, a elegância matuta do Mundo-Sertão era por ele cultivada. Sua experiência exalada no respirar contagiava aqueles mais sensíveis. Aquele andar lento, com o apoio de uma bengala era um tanto quanto enigmático. Sua prosa era o canto da sereia que nos levava para um mundo distante, bonito, bebendo o néctar de nossas raízes.
Não havia um momento sequer que não aprendêssemos algo, era “encostar” nele e lá vinha mais uma história preciosamente rica de informações históricas e antropológicas. Bastava saber perguntar e do gesto terno e sóbrio fluía um rio de conhecimento sobre todas as coisas do mundo. Agora o que sempre o empolgou foi contar sobre seu território ancestral, a antiga fazenda Mumbuca e os arredores entre os municípios de Puxinanã e Pocinhos, a vida brava na zona rural entre a agricultura e as caçadas, entre os passeios nas serras e os banhos de barreiro na invernada. A Serra do Maracajá parecia mais ser um mundo encantado, onde as pedras dançavam e o assobio da comadre florzinha encantava os bichos nas locas, livrando-os dos caçadores. Lugar de abrigos rochosos que escondeu caboclos antigos e cangaceiros. E sobre o famoso Lampião é uma página a parte, falou com emoção ter visto, certa vez, a cangaceirada passar no terreiro de sua casa rumo ao sertão, não sem antes beber quase toda a água do pote.
Das inúmeras histórias que me contou, uma muito divertida é sobre caçada: “Miguelzim, irmão mais velho que eu, me ensinou a fazer fôjo e todo tipo de armadilha”. Dizia Vovô que os bichos tinham uma rota pré-estabelecida, era analisar os rastros, ver o caminho e fazer a melhor escolha. Agora a caçada que ele gostava era com uma pareia de cachorros, e não eram os perdigueiros dito por Luiz Gonzaga em uma canção, cão de quem tinha posse, eram vira-latas, um caramelo e outro preto, não tinha cachorro mais servidor do que aqueles. Muito inteligentes, eram ótimos companheiros de caça. Nessa toada, Vovô se viciou e passou a caçar quase todo dia: “de noite no mato e logo cedo lá na baixa da égua! Era muito bom caçar. Meu pai e meu tio falavam para não caçar todo dia, que a resposta da mata vinha, era ruindade matar bicho todo dia. Eu nem ligava pr’aquilo, era como um esporte, tinha medo de nada. Mas veja só, um moleque de dezesseis anos achando que é dono do mundo…” E assim os dias se passaram.
Era uma sexta-feira, dia que não se caçava de jeito nenhum naquela região por medo das coisas do mato, a caipora, a comadre florzinha e sua mãe viu quando começou a arrumar o bornal e disse: “Zé Severino, não vá não, abra do olho!”. Danado é que a mãe dizendo que não vá é mesmo que rogar uma praga, acontece de tudo e ela tinha sempre razão. Pois bem, ele foi.
“Meu filho, nesse dia tomei um caminho diferente, subi a serra beirando uma cerca que dava para um partido de milho, logo lá na frente me assusto com uma coruja que estava no mourão e saiu “rasgando” em minha direção. Fiz o pelo sinal e segui. Com a pareia de cachorro, acuei um peba. Mais adiante, na meia encosta, terreno inclinado, comecei a subir. Chamei os cachorros e eles silenciaram. Crê em Deus pai, pensei o que podia ter acontecido. Uma fina neblina alumiada pela lua cheia e vejo os cachorros parados, mudos e encostado na árvore um homem baixo, um mapinguinho com um cachimbo, os beiços vermelhos como sangue de bode, a roda dos olhos brancos. Se rindo, ele baforava o cachimbo e olhava para os cães que nem se mexiam. Perguntei quem era e nada desse cabra falar, pego a espingarda e dou um tiro meio que pra cima, esse cabra correu em minha direção e me derrubou, passou feito uma bala, foi quando vi que só tinha uma perna. Levantei e olhei para trás e só vi fumaça e poeira”.
Nessa hora os cachorros desencantaram e correram atrás do cabra, mas nada pegaram. Vovô lembrou da fala de seus pais e de seu tio e desde aquele dia não quis mais se meter em história de caçada: “Foi a última! E é por isso que digo, respeite mãe e pai e você vai longe”. Êita Vovô, que saudade!