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Museu do brilho solar (Irapuan Sobral)

A arte é o oitavo dia ou a inércia da criação divina.

Fui a Solânea para o São João, levado pela família de meu genro, Kayo Bandeira. A festa nos chamava com bandeirolas, fogueiras, sanfona e memória. Mas o que encontrei ali foi mais do que canções ou milho assado. Encontrei um museu vivo, disfarçado de casa. Um lugar onde o passado, longe de se calar, se exibe em voz alta.

Não fui preparado. Nenhum de nós está, quando a beleza se impõe. Quando dei por mim, já estava sendo guiado por Wilson Bandeira através dos cômodos da sua residência, como se ele, com a mais tranquila naturalidade, estivesse me conduzindo pelas salas de um museu invisível ao turismo e aos editais.

Lembro bem daquele rádio. Um desses que vejo agora na parede, como quem reencontra um espelho antigo. Na casa do meu pai, ele ficava à esquerda da porta que dava para o que chamávamos de área descoberta – um espaço de transição, onde o fim da tarde parecia durar mais tempo, e o silêncio tinha lugar certo para pousar. Era o caminho para o gabinete de trabalho do pai. E o rádio, sobre uma mesinha discreta, parecia tanto vigia quanto companhia.

Foi ali que muitas vezes fiz meus deveres escolares, escutando ao fundo as vozes da rádio misturadas à cadência firme dos passos paternos. Se não direciono a cena para os traumas – e poderia – , há na pele marcas de uma pisa que ainda brilha, como se cada cicatriz contasse uma história.

Vi esse rádio de novo – talvez o mesmo – na oficina de Antônio Leite, em Jatobá, e no Mercado das Pulgas, em Paris. Lugares distantes no espaço, mas irmãos no tempo.

Quando cheguei à rua da casa, as bandeirolas baixavam o céu as cores. Aproveitei para uma foto, mas logo fui abrindo os olhos para as paredes, para os objetos, para o lugar inteiro. Era como entrar num tempo condensado. Um antiquário sem balcão. Um relicário sem capela.

A família estava lá, presente e calorosa. Mas me entreguei ao exame das coisas, guiado por Wilson – meu cicerone espontâneo.

Wilson Bandeira é um personagem de si mesmo. Músico, vaqueiro, colecionador, artesão, curioso e uma conversa refinada sobre tudo o que faz. É tio-avô da minha neta Any – e isso já seria motivo para um parentesco afetivo. Esquadrinhamos juntos cada peça exposta na casa. O mais surpreendente: tudo ali é funcional. Nada é cenário. A arte vive.

Sempre me vangloriei de morar, em Brasília, numa cidade-museu a céu aberto. Mas nunca havia imaginado uma casa-museu viva – em Solânea.

Depois dos rádios, fui tocado pelas imagens de santos de madeira. Relíquias que dobram o tempo. Wilson me apresentou cada uma, com orgulho contido. Falava da escultora, de quem adquiria, das origens, e de como ele pintava cada peça com a sua própria devoção.

De repente, o São João se apagou da memória. Fui perdoado pelos pecados e me perdi na mentoria silenciosa daquela arte. O acervo é vasto e cuidadosamente mantido. Um petisqueiro que foi armário, uma cama restaurada, um urinol ornamentado, pinturas belíssimas – inclusive uma obra do irmão, Windsor, sobre touradas.

Poucas vezes vi tamanha beleza em estado de uso.

Em toda a casa, cada objeto tem função. Nada ali está à toa. Nos fundos, uma oficina abriga peças em estado de espera – objetos que contam, mesmo calados, que o tempo pode ser generoso. É como se estivessem se preparando para uma futura exposição.

Wilson já não é mais o vaqueiro nem o músico. A idade não lhe oferece mais a resistência. Mas permanece o reparador. Aquele que conserta não só coisas – conserta ausências.

E tudo isso tem custo. Ele se queixa – como quem sabe -, mas não vende. Disse a ele que deveria mercantilizar sua arte. Não por vaidade, mas por justiça. Para que ela circule, encontre outros olhos, e possa ser qualificada. Para mim, essa é a verdadeira função do mercado de artes.

Oferecer alternativas nesses instantes parece invasivo. Mas ninguém se furta às perguntas que assaltam o olhar:

– Você vende?

– Por que isso não está num museu?

– Você não teme pela segurança?

– Quanto vale tudo isso?

Sugeri que ele procurasse antiquários, curadores, museus, em todo o mundo, para garantir futuro àquele passado.Lembrei que Brennand, ali em Recife, fez o mesmo, abrindo o que é hoje um dos museus mais visitados do mundo.

Mas ele, com a calma de quem esculpe um lenço no mármore, respondeu:

– Solânea é o meu lugar. Eu preciso de tudo isso aqui.

E era verdade. O brilho da sua arte vem da terra – não do ouro: é um brilho solar.

Há algo de fanatismo no chão da gente. Talvez seja isso o que faz da arte um oitavo dia ou a inércia da criaçãodivina. Wilson Bandeira tem um museu dentro de casa, fingido de antiquário.

Deus há de dar que resista ao tempo.

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