Meu passado numa esquina
Primeiramente, me vêm Sérgio e seu canto belíssimo ao lugar onde teve a infância. Exatamente lá, onde “os tabajaras depuseram as suas setas nos arcos das esquinas”. Substituo a agonia do trânsito caótico de hoje pela memória daquele
“menino antigo de uma tribo cuja aldeia não era tão global”. É a paz e a tranquilidade dos anos de 1960 perdidas por ele e pela Avenida dos Tabajaras o que de início me ocorre, nessas ocasiões.
A subsequente visão de uma linotipo na calçada do “Correio da Paraíba, quase uma peça de museu a céu aberto, remete-me, em seguida, também, ao passado.
O diploma de contínuo a mim conferido no fim da gestão do governador Pedro Gondim não me impediria de atuar, três anos depois, na equipe de Revisão do Diário Oficial do Estado. Aluno do Liceu, eu me dava bem com a gramática e já havia aprendido os sinais de inserção e exclusão de letras, de espaços, transposição de palavras, indicação de fontes, alinhamento à esquerda e à direita, ou centralização de linhas. Ou seja, já tinha de cor e salteado os signos básicos necessários aos reparos de erros gráficos antes da feitura de cada página.
Substituí um revisor faltoso e me livrei do serviço de água, cafezinho e recados a repórteres e redatores. Mas não sem antes ouvir a recomendação de Rui Rio Branco, o chefe da Equipe de Revisão: “Fique atento aos piolhos”. Ele se referia à letrinha perversamente excluída, ou incluída, no meio de palavras por linotipistas insatisfeitos com o congelamento dos salários.
Sintam vocês, meus queridos, o perigo. Imaginem, por exemplo, o constrangimento do governador, ou secretários de estado, obrigados a republicar por incorreção o ato de nomeação, ou remoção, de um funcionário público que perdera o “v” de Carvalho.
Pois bem, na minha época, os revisores do velho jornal trabalhavam numa ponta da Oficina, à pequena distância de quatro ou cinco linotipos com suas caldeiras. Respirávamos o mesmo vapor de chumbo sem direito ao leite de vaca nem ao adicional por insalubridade no contracheque. A Sala da Impressora, no mesmo piso, tinha porta larga do lado da Praça 1817 para o ingresso das grandes bobinas de papel e saída das edições diárias para as bancas e assinantes.
No andar superior, punham-se os diretores administrativos e os jornalistas com suas mesas, cadeiras e máquinas datilográficas, todas enfileiradas. Seus textos, enrolados nos diagramas das respectivas páginas (traçados em papel com régua e lápis) desciam por um buraco no piso até o térreo onde dependuravam-se na boca de uma grande pinça atada a um cordel até serem recolhidos para a composição, repito, em chumbo derretido.
“Descer matéria” vem daí, meus caros. Vem da configuração antiga desses prédios, nos quatro cantos do mundo: Redação em cima e Oficina embaixo.
É jargão perpetuado nestes dias de composição a frio, computadores, transmissões on line e oficinas ascéticas como salas cirúrgicas, mesmo quando tudo esteja num só pavimento.
Certa vez, subi para não mais respirar aqueles vapores. Foi quando me convidaram para compor o time de noticiaristas. Tudo por conta do Barão de Münchhausen e suas histórias formidáveis publicadas desde 1785.
Terminado meu turno de revisão, decidi acompanhar a produção de textos em busca do aprendizado, como habitualmente o fazia. Marcos Tenório substituía o adoentado secretário de redação Marconi Altamirando e agoniava-se com a demora de José Souto, diretor e, ao mesmo tempo, editorialista do jornal. Justamente num sábado, o homem se atrasava, impedindo o fechamento da página de opinião e, por conseguinte, da edição inteira. Eu havia escrito um comentário sobre as homenagens da Alemanha ao Barão, o autor de histórias fantásticas consumidas em escala planetária, notadamente, pelo público juvenil.
Até então, me faltava a coragem para mostrar o que fizera inspirado na leitura de boletim do governo alemão, traduzido para o português, do qual aquele incrível criador de aventuras era tema de capa. Marcos,
por sua própria conta e risco, já se dispunha a recorrer à tesoura: cataria um editorial antigo e o republicaria como se inédito fosse.
Pronto, a boa sorte me sorria. Pedi que ele analisasse meu texto, sugeri a elevação do artigo de Linduarte Noronha sobre a seca (já diagramado) como editorial e a publicação como suelto daquilo que eu escrevera. Minutos depois, recebi a resposta: “Está muito bom, rapaz. Espero meia hora e faço isso, caso nesse tempo Souto não chegue”.
Esperançoso, passei a torcer pelo sumiço do diretor. Mas lá veio o galego. Chegou esbaforido, chateado com o atraso da solenidade na Granja Santana, regada a uísque. Àquela altura, não tinha cabeça para nada. “Veja isso”, pediu-lhe Marcos. Aqueles cinco minutos de espera quase me mataram. Coração aos pulos, atendi ao chamamento do homem por quem fui parabenizado e convidado a compor, doravante, o corpo de redatores da velha A União. Ah, sim, transcorria, já, o governo de Ernani Sátyro.
Isso explica meu envolvimento emocional com esse trecho da cidade. É que, ali, tenho isso tudo na mesma esquina: o poeta querido, a evocação encantadora da sua rua e a máquina que compôs meus primeiros textos para jornal.