Lampião em sua máquina de costura – textileindustry
A CIDADE FERVILHAVA em polvorosa com a abertura d’O Maior São João do Mundo que se daria logo mais à noite. Muitos carros, muito trânsito, muita gente nas ruas, um clima junino que transcendia comportamentos e expectativas. Euforia nas rádios, trios de forró na calçada de lojas, em shoppings e restaurantes. O calçadão lotado aplaudia forrozeiros que ali davam o ar da graça e outros músicos se achegavam para a famosa “palhinha”, nem que fosse no triângulo, em uma insuspeita comunhão. Se a ornamentação deixava a desejar, se faltava um algo mais, o povo não queria nem saber. Os arredores da feira e o caminho para os bairros estavam repletos de espigas de milho amontoadas nas esquinas, a mão de milho sendo vendida a quarenta reais. Realmente a tradição não se acaba porque é espontânea, o povo resiste.
Observando toda essa movimentação citadina, logo após uma importante reunião, acompanho o amigo poeta Z’Édmilson ao tradicional Bar Caldo de Peixe, que funcionou por muitos anos na Prof. Almeida Barreto e agora se encontra na primeira transversal, perto do escritório de Fred Ozanam, ali pertinho do Parque do Povo, em uma edificação mais aberta e ventilada, aconchegante. O Caldo de Peixe tem uma frequência muito bem concorrida e clientes assíduos, dentre eles, estamos nós.
Era manhã de sexta-feira, por volta do meio dia, a movimentação e montagem nos arredores do Parque do Povo era grande. Estacionamos. Na calçada, a fechadura elétrica se abre. Em uma das mesas estavam Chico do Cadastro, Tadeu Guimarães e o amigo Rui Barbosa, filho do inesquecível e saudoso amigo Manoel Barbosa, o enfermeiro do povo que fez muito pela cidade em seu posto de saúde, na câmara municipal e também nos gabinetes de leitura como grande intelectual que foi. Após saudações e afagos, pedimos nossos caldinhos com tripa frita, delícia regada a uns goles. Na parede um banner anuncia um trio de forró que animaria a manhã do dia seguinte de quem usufruísse daquele espaço, e tudo já estava enfeitado. Em mãos, estava com o livro ‘Lopes de Andrade: memórias’, do confrade do IHGP Itapuan Bôtto Targino, lançado no dia anterior. Comentava com Edmilson algumas coisas sobre o sociólogo, quando logo me pediram para dar uma espiada no livro. Após folheá-lo, o amigo Rui Barbosa me olhou, encarando-me novamente segundos depois, como que quisesse falar algo. Alguns minutos se passaram até que ele se levantou, sentou conosco e apontando para mim disse: “Vou contar uma história, e vou porque você está aqui como testemunha, não vai me deixar no embaraço”.
Interior do Choop – mapio.net
O que será que Rui tinha a dizer? Será que finalmente decidiu publicar o livro que fiz com Edmilson sobre o vosso pai? Seu semblante, sempre sério e cordato, não dava pistas do que poderia ser. Saquei a caneta, abri o bloquinho discretamente e fiquei atento. Com ar decididamente sério – ele faz isso até contando piada – olha para mim e diz: Você sabe que Lampião foi o maior figurinista do Nordeste? Edmilson parou para escutá-lo, parecia não saber do que se tratava, e começa Rui a contar sua história:
“Isso tem mais de vinte anos, época junina. Era umas dez da manhã de sábado, fui ao Chopp do Alemão encontrar amigos para curar a ressaca, não havia quase ninguém. Em uma daquelas mesas do corredor, que forma uma espécie de cabine, estava João Dantas quase a palestrar sobre Virgulino Lampião. Esse cabra aí (se referindo a Edmilson) estava com ele. Os dois conversavam compenetradamente, cheguei à mesa e sentei ao lado do poeta aí. Passaram-se alguns minutos naquela calorosa conversa, eu olhava para um, depois para o outro, tentava participar, dizer algo, mas eles pouco se importaram com a minha presença, estavam embalados. Resolvi, então, me vingar, porque para acabar conversa eu sei muito bem, e não tive qualquer espaço, foi quando exclamei em voz alta e contundente: “De uma coisa vocês não sabem, Lampião foi um dos maiores figurinistas de todo o Nordeste brasileiro”. Aquela afirmação chamou a atenção de João e Edmilson que pararam imediatamente e de olhos quase aboticados encararam Rui, esperando a explicação devida. E ele continua: “Vejam só, Lampião escolhia as cores das roupas dos cangaceiros, os adereços, aquelas estrelas cada uma ele que determinava, em todo caso, andava com uma máquina manual de costuras, quer dizer, o homem entendia de figurino e se dedicava bem, enquanto isso… Maria Bonita fazia o que não devia”. Rui me olhou, deixando soltar um tímido sorriso e disse: “Mas rapaz, eu vi a hora eles me fuzilarem. Pelo menos com o olhar fizeram isso. E se tocaram que eu estava ali e deveriam mudar de assunto”.
Rui Barbosa, José Edmilson, Chico Lima e Tadeu Guimarães
Naquele momento, Edmilson deu uma estrondosa gargalhada, rimos muito sobre a história contada por Rui e como foi fértil sua imaginação ao acabar com o colóquio cangaceiresco dessa maneira. De imediato ligamos para João Dantas, que lembrou bem do ocorrido e deu mais detalhes. Sacanagem Rui! Ele respondeu: “sacanagem comigo, dois safados! A partir dali curamos a ressaca com chopp e ficou a história para contar e nunca mais ousaram me deixar de lado!” . Isso poderia acontecer com qualquer outro amigo, nessa mesma situação, como ocorre com um bom papo que as vezes não tem fim não é? É preciso interromper.