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Julgar é humano (Irapuan Sobral )

‘Recuerdo una frase muy linda de no sé qué comedia de Bernard Shaw… ‘He dejado atrás el soborno del cielo’. El Cielo vendría a ser un soborno. El infierno, una amenaza.’
Borges, em entrevista a Barna, Buenos Aires, 1980

Aguardar o julgamento de Deus é o desespero humano. Não creio que outros animais tenham esse medo. Se algum tiver, não será tão hediondo quanto o nosso.

Lamento informar que Deus não julga. Mesmo contrariando toda a literatura sapiencial, insisto que Deus não é juiz em nenhum tribunal — nem aqui, nem na eternidade transcendental.

Julgar é comparar. E Deus não compara. Nada, no divino, é igual a outra coisa. Tudo é novo, único, singular. Essa é a graça da divindade: não há repetição. O ato de comparar exige uma matriz, um modelo a ser seguido. Julgar é medir os outros por esse modelo. Por isso, é profundamente humano — e profundamente limitado.

Além disso, a misericórdia de Deus é infinita. Sendo infinita, absolve sempre. Não há pecado que ultrapasse a graça. A fornalha eterna, onde os maus ardem sem fim, é criação nossa — não divina. É um artifício moral que usamos para nos proteger da própria liberdade. A ameaça do inferno serve para domesticar os impulsos e regular condutas, não para revelar a justiça de Deus.

E mais: Deus não acusa. Apenas se mostra. Ele se põe diante do crente como um espelho — e o crente, ao vê-lo, vê-se. O julgamento acontece ali, no reflexo. Borges dizia: o céu é um suborno, o inferno, uma ameaça. E completava: as ações dos homens não merecem tanto. A presença divina não julga: expõe. E toda exposição nos exige escolha. O julgamento não vem depois do ato — ele o acompanha.

Aliás, foi assim desde o princípio. A primeira pedagogia divina no paraíso não foi o castigo, foi a consciência. A árvore do conhecimento não era armadilha, era aviso. Obedecer ou viver: esse era o dilema. A Queda não é punição, é consequência. Ao comer o fruto, a humanidade não pecou — despertou. E, com isso, herdou o peso do julgamento. Passamos a julgar a nós mesmos, uns aos outros, e a criar listas e tipos de pecado — entre a conveniência e a conivência. O tribunal nasceu aí. Sem Deus, mas com altar.

Deus não criou o inferno nem o purgatório. O purgatório talvez seja pior: é o cenário do “se…”, onde passa o filme do que poderia ter sido. A alma assiste ao passado que não viveu, contracenando com todas as criaturas às quais se omitiu. É o teatro da culpa com entrada única.

Julgar é um instinto humano — nascido da necessidade de sobreviver em bando, de prever traições, de excluir o estranho. Mas se tornou um vício. Tornou-se pecado seminal. E, por isso, o inferno e o purgatório pertencem à Terra.

No sertão potiguar, um famoso coronel decidia o destino de um réu com a simples presença no tribunal. Se aparecia, havia interesse. Com um olhar para o réu e outro para os jurados, decretava a sentença sem ouvir debates, sem esperar veredito. Quase nunca faltava. E quase nunca errava. Seu julgamento não era jurídico, era ancestral — uma espécie de saber antigo e silencioso.

Na América, Jefferson dizia que o júri é o mais democrático dos tribunais, por ser próximo do povo. Talvez. Mas também pode ser o mais cruel — porque reflete os medos e os pecados da maioria.

Machado de Assis foi mais expresso, em sua crônica ‘No momento em que escrevo estas linhas’, como Manassés: ‘Quando uma Constituição livre pôs nas mãos de um povo o seu destino, força é que este povo caminhe para o futuro com as bandeiras do progresso desfraldadas. A soberania nacional reside nas Câmaras; as Câmaras são a apresentação nacional. A opinião pública deste país é o magistrado último, o supremo tribunal dos homens e das coisas. Peço à nação que decida entre mim e o sr. Fidélis Teles de Meireles Queles; ela possui nas mãos o direito a todos superior a todos os direitos.’

Se o medo é humano, há um medo coletivo — popular — que nega o paraíso. Porque a graça é insuportável. Ela exige que a gente se veja. E ninguém suporta olhar-se todo dia.

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