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Histórias de um sobrado (Thomas Bruno Oliveira)

 

Histórias de um sobrado

 

O sobrado do Brejo – (Pintura de Alessandro Silva)

As primeiras casinhas construídas na Rua d’Areia remontam o século XIX, eram um pouco mais distantes da Rua da Matriz e da área mais central do pequeno burgo. Uma das mais pomposas foi construída por um tal Coronel Terto que serviu na cidade nos tempos da Revolução. Aliás, construir não, terminar a obra. É que a construção havia sido iniciada por um Sargento da Guarda há muito tempo antes e não concluída pelo assassinato de seu dono em um dia de feira por motivo torpe, deixando a construção do sobrado apenas nas fundações e paredes laterais. O terreno da casa ficava um pouco mais alto que o nível da rua, por trás do velho Cemitério, mas o Coronel não fez caso e tratou de procurar o mestre que deu início a tudo e, tendo a confirmação de que a obra está segura e havia sido usado bom material, resolveu então concluí-la. Aos poucos foi se erguendo o belo sobrado com frisos, cornijas e diversos adereços ornando portas e janelas. No alto, em destaque, o brasão de sua família. Demorou mais de um ano para ficar pronto, enquanto isso, Terto era hóspede de uma pensão na Rua do Comércio.

 

Rua Dr. João Leite, depois chamada de João Pessoa após os acontecimentos de 1930

 

Ao saber que o Coronel estava dando continuidade à construção, a dona da pensão o alertara: – Sr. Coronel, tanto lugar para construir e o senhor foi escolher logo ali? – O que tem de mal, minha senhora? – Dizem que ali é mal-assombrado. Quem passa por lá vê visagens, alma e até o diabo já viram dançando lá na frente em noite de São João. Sem falar que a alma do Sargento costuma bailar por ali, desassossegando o povo que mora perto. A essa época não havia o Cemitério das Areias, lá no fim da rua e algumas pessoas costumavam ver vultos nessa construção quando o enterro era no fim de tarde.

E a retomada da construção começou com o mestre Ciço Mancha, que tinha esse nome por estampar uma marca de nascença ao lado da boca. A obra demorou um pouco por conta do acabamento que veio parcelado do Recife, mas ficou prontinho e belo. Na mesma semana o Coronel trouxe sua esposa e filhas do sertão. Durante sua viagem, as janelas do sobrado batiam a noite toda; entretanto, de dia apareciam fechadas… e o lugar pareceu mesmo que ia continuar sendo mal-assombrado. Já instalados, a esposa adorou o novo lar. Tudo de muito bom gosto. Até um piano ele negociou com um maestro do lugar, já que as três filhas aprenderam a tocar com seu avô materno. Até que na hora do jantar, ela viu um vulto sentado à sala apagando a vela. No dia seguinte, a filha mais velha viu um vulto entrando na camarinha. O Coronel não acreditou e levou tudo na brincadeira, maluquice feminina. Dias depois sua filha mais nova apavorada, entra em seu quarto e disse que uma velha senhora não a deixava dormir puxando seus pés. Ele foi para a sala e não conseguiu dormir em uma rede, toda vez que pegava no sono, sentia a furada de agulha. Antes do amanhecer cortaram o punho da rede. Quem foi? Quem sabe?

 

Cemitério Velho de Campina Grande – RHCG

 

Logo bem cedo, o Coronel foi pedir a benção ao padre na Igreja do Rosário. Não devidamente satisfeito, foi à Matriz de Nossa Senhora da Conceição pedir o mesmo e conversou com o vigário sobre o ocorrido. Solícito, o clérigo tentou acalmar seu o coração angustiado pelas assombrações e, caminhando, o acompanhou até a calçada e mostrou o sobrado em frente à igreja dizendo: – Esse sobrado não prendeu só degradados, prendeu almas também. Em seu oitão ou no alto do telhado, aqui acolá se vê almas, e não são aquelas pessoas fazendo necessidade em dia de missa, é alma mesmo. Até um pobre peregrino é visto descendo o beco-do-mijo às carreiras. Já fui lá e benzi o prédio, mas aqui é assim. Não se preocupe, em uma vila ordeira como essa, até as almas são boas. Zombeteiras podem ser, mas não há nenhum mal. Reze um pai nosso e três Ave Marias, vai acalmar seu coração.

 

O Coronel recebeu bem as palavras do vigário, mas ao chegar em casa, sua esposa reclamou de todas terem ouvido louças quebrando na sala e no lugar nada quebrado, só o barulho. Todos se reuniram de joelhos na sala do oratório e rezaram até que um estrondo nos fundos interrompeu a reza, Terto vai até o terreiro e vê um homem acocorado ao lado de dois batentes que já existiam da construção antiga. O tal homem transformou-se em fumaça. À tardinha, uma mão forte batia na porta, quando o Coronel foi abrir a porta, um vulto saiu de suas costas e ganhou a rua. Um homem negro e alto, parecia muito com um tio querido que mora no sertão, o Chico Vaz. Em desespero, o triste homem foi à fruteira e tomou duas lapadas, sem antes contar o ocorrido a uns três ou quatro populares. Após sair da fruteira, um dos ouvintes comentou: – Esse mal assombro é de dinheiro e deve estar enterrado ao lado desse batente…

 

De volta ao sobrado, o Coronel resolveu esperar ver o que aconteceria durante a noite, após ouvir tudo quanto é voz, móveis saindo do lugar, barulho de louça e de talheres, no outro dia recebe a notícia que seu tio Chico Vaz falecera no sertão justamente no fim da tarde. Ele se benzeu, deu as ordens e nunca mais pisou no sobrado mal-assombrado.

 

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Publicado na coluna ‘Crônica em destaque’ no Jornal A União de 3 de abril de 2021.