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Eu olhei nos olhos da fome Marcos Pires

“Vi ontem um bicho na imundície do pátio catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa não examinava nem cheirava: engolia com voracidade. O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem”. Já lá se vão mais de 70 anos desde que Manuel Bandeira produziu essa obra prima sobre a miséria humana e a situação só piorou.

Eu estava saindo do supermercado e no estacionamento um quase cadáver ambulante aproximou-se. Segurava um papelão rasgado ao meio onde só apareciam as palavras “com fome”. Desnecessário. Aliás, até o cartaz era desnecessário porque a face encovada do ainda ser humano já gritava sua agonia. Recordei do poema de Manuel Bandeira e naquele momento decidi que não seria por minha omissão que ele iria disputar com animais o lixo que nossa abundancia produz. Contrariando uma prática que nem sabia existir em mim (mas que naquele momento mostrou toda a sua crueldade) não virei o rosto nem me escondi na tela do celular para não ver o que todos precisamos ver. Desci, comprei uma refeição no self-service da loja e dei ao mendigo. Ele afastou-se e eu procurei segui-lo para ver se ia jogar fora, porque na minha crença “essa cambada só quer dinheiro para encher a cara de cana”. Nada disso. Por trás da mureta estavam uma mulher e duas crianças a quem ele entregou a comida. Nem provou, voltou ao estacionamento para pedir mais ajuda.

Dei partida no carro e logo à frente encontrei uma venezuelana com seu vestido colorido esmolando no sinal luminoso. Na calçada 4 crianças esperavam por ela. Tive coragem suficiente para olhar aqueles pares de olhos esbugalhados. Eram os olhos da fome.

Envergonhado segui em frente, atordoado pela incapacidade humana de resolver algo tão básico. É emocionante ouvir as pessoas dizerem que a fome não pode esperar. E é verdade. Mas o que poderemos fazer sobre isso para além de esperarmos soluções dos poderes que por mais bem intencionados sejam, não estancam o crescimento da fome ao redor do mundo? As ONGs que cuidam do “problema” não me mostram resultados perceptíveis a não ser belos comerciais e a única iniciativa que me emocionava porque visível, voou nas ASAS da corrupção.