“De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.”
— Ruy Barbosa
N’O Velho Senado, também exposto à observação crítica e literária de Machado, Ruy deixou a referida exortação, com ares de profeta cuja premonição viria revelar-se verdadeira ao longo dos anos. Tratava dos dissabores éticos do país oficial e da pedagogia perniciosa que envergonha a nação.
Foi o mote do bar, depois que a TV exibiu uma reunião de próceres políticos mumificados pela história, mas que insistem em biografias que, a rigor, não seriam aceitas como currículo em nenhuma facção das que modelam e já mantêm grande parte da população sob seus governos de fato. Na verdade, eles se exibem com “folhas-corridas”.
Então esse tema coloriu a conversa.
As dificuldades das pessoas honestas eram demonstradas nos atos do cotidiano.
Um dos nossos mais ilustres convivas tratou do trânsito.
Ele disse:
– O trânsito é o melhor substrato para examinar um povo. Se você obedece aos limites de velocidade, aciona a buzina de quem vem atrás; parar nas faixas de pedestres, ou no semáforo, é um risco de batida. Neste caso, a falta de educação do vizinho de trás lhe obriga a violar a norma e quase atropelar pedestres; há quem obedeça às filas, como há os que preferem tomar o direito de outrem e passar à frente de todos; a fila dupla já é uma mania; as calçadas não são exclusivas do passeio; há o esperto que se imagina invisível ao estacionar em vagas reservadas; sinais de movimentos ninguém dá – deve ser porque presume que alguém saiba de seus interesses; e tem aquele cara que resolve disputar corrida com todos sem avisar a ninguém da disputa.
E não são só as filas de trânsito. Também as filas de atendimento – que em Portugal chamam de “bichas” – viraram laboratório de desobediência. Já arrumaram álibis perfeitos, como no tempo da vacina na Pandemia de COVID: eram tantas as pessoas doentes e com alguma comorbidade que quase se originava outra pandemia de deficiência moral. Aliás, esses são os mesmos que adoecem para não pagar imposto de renda, compram carro com abatimento e outras facilidades. Outro dia, alguém comentou que já existem profissionais especializados em “dar PT em carro” para fraudar seguros. Um rapaz, que parou pela conversa, completou:
– Aqui se alugam pneus novos apenas para vistoria no Detran.
Acabei sendo pautado, porque alguém me perguntou sobre as minhas atividades atuais. Respondi que estava numa fase sabática da advocacia, deliciando-me como compositor.
Então, ele foi direto:
– Espero não ofendê-lo, mas devo dizer que o trato oficial e até, por septicemia, o atendimento particular ao público, no Brasil, está passando por uma fase de difícil controle ético. Nesses ambientes, quando há carência de invocar o direito, surgem muitas dificuldades para quem se movimenta com honestidade obediente aos ritos e liturgias. Isso não é nada bom, porque seria o último ponto de segurança para qualquer pessoa, quando no limite. São tantas notícias sobre influências que a rotina comum é quase um calvário.
Um senhor de idade avançada fez questão de encerrar, pela aridez do tema, impróprio ao tira-gosto:
– Ora! Ora! Não há mais área saudável. Tente marcar uma consulta por um plano de saúde e verá que não há vagas para dias próximos. Depois tente a mesma consulta particular ou através de um amigo comum, que conseguirá. Eu nem sei se isso faz parte do contrato deles. Mas sei que o Brasil oficial não tem mais nada do Brasil real e, pior, tenta destruir o que resta, resistindo, de ética na nação. Para lhe ser franco: Ruy Barbosa foi profético, e a profecia está se cumprindo.
Antes de um trago de despedida, uma senhora riu e falou:
– Até as amizades estão sob ataque ético. Ninguém tem mais amigos por amizade, mas por interesses, geralmente escusos.
No bar, por conveniência tácita, a conta é paga sem fila, sem atalho e com a honestidade do balcão.
PS. Um garoto, que acompanhava o pai na feira, ao ouvir a conversa, disse:
– Se apenas um quebrar o elo que lhe corresponde, a corrente do mal se parte.
Quem seria esse salvador?