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Entre camarões, piabas e o cinema (Thomas Bruno Oliveira)

Açude do Estado, açude Soledade, Soledade-PB. - Elias Rodrigues (Pinterest)

 

Açude do Estado, açude Soledade, Soledade-PB. – Elias Rodrigues (Pinterest)

Quando pensamos em fazer algo,

se você deixar levar pelo

desejo de realizar aquilo, não existe

dificuldade que não seja vencida.

(Ivanildo Gomes)

 

EM 2002 CONHECI UM VENDEDOR que andava com uns baldes e uns saquinhos pelas ruas centrais de Campina Grande-PB, nada mais que não pudesse carregar em seus fortes braços que viviam com os músculos à mostra pela camisa com as mangas mal cortadas à tesoura. Porte físico não cultivado para se exibir, e sim pela exigência no duro do labutar. Barba por fazer, sorriso tímido e uma simplicidade digna de honradez. Seu nome é Ivanildo Gomes, um incansável pescador do município de Soledade que percorria quilômetros para garantir seu sustento vendendo cordas de piabas, pequenos peixes e um minguado camarão fisgado por armadilhas postas no açude Soledade (o açude do Estado como é conhecido); todos eles petiscos muito apreciados em pequenos bares e por algumas famílias cuja essência repousa na zona rural. Seu caminho era de porta em porta nas ruas do centro da cidade.

Cordas de piaba - @peixesdacaatinga

 

Cordas de piaba – @peixesdacaatinga

Na Av. Getúlio Vargas, meus pais têm uma oficina de eletrodomésticos há anos e por muito tempo foi uma de minhas escolas. Em uma certa tarde, Ivanildo chegou a loja de consertos e fui atraído pelo cheiro das cordas de piaba seca. – Quanto custa? E iniciamos uma conversa honesta. Perguntei de onde vinham, aprendi detalhes da pescaria e “lá pelas tantas” – como dizemos nos Cariris Velhos – conversávamos sobre prédios antigos de Soledade, a beleza de sua igreja Matriz em devoção a Nossa Senhora Sant’Anna e de suas antigas fazendas, foi quando ele sacou de uma de suas sacolas um dvd dizendo que foi um filme que produziu. Pediu que eu assistisse e depois fizesse algum comentário.

 
PR Eletro na Av. Getúlio Vargas - google streetview

 

PR Eletro na Av. Getúlio Vargas – google streetview

Em casa assisti a produção ‘O cabra e a cabra’, um drama que aborda uma cabra que ao invadir um roçado de uma fazenda alheia, fez uma devassa comendo os brotos e ao ser flagrada pelo dono do sítio teve seu rabo cortado. Tal costume é comum no interior, funciona como uma represália ao dono do animal. Só que o ocorrido desencadeou uma confusão sem limites e uma grande briga entre famílias.

 

Imagens das gravações – Acervo pessoal Ivanildo Gomes

 

A cada cena que se desenrolava, a cada ator e atriz (todos amadores) que encenava suas personagens, eu refletia sobre a criatividade daquele pescador que fez seu primeiro trabalho em 2000: ‘Pescaria sangrenta’. Me veio à mente o Cinema Novo e o famoso lema “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. E foi numa surrada JVC portátil que ele transformou seu sonho em realidade. Vieram após ‘Nove marmanjos e o rabo da cabrita’, ‘O Vaqueiro’…

 

 

 

Pouco tempo depois, dividindo meu tempo entre os bancos da universidade e o ministrar aulas na Assistência Social Santa Teresinha – Assta (administrada pelo saudoso Frei Matias), Ivanildo dirigiu um curta apresetando o poema ‘O velhinho do roçado’ de Expedito Sobrinho que para a minha alegria, o ator que interpretou o Velhinho foi meu ex-aluno Fernando Luiz*, hoje um grande historiador de Soledade, entusiasta das artes e do patrimônio histórico e cultural da cidade e que me dá um orgulho danado em ter semeado um pouco de conhecimento e ver toda sua brilhante trajetória.

 
Matriz de Nossa Senhora Sant'Anna depois da missa. Dia das mães de 2025, Soledade-PB - TB

 

Matriz de Nossa Senhora Sant’Anna depois da missa. Dia das mães de 2025, Soledade-PB – TB

Recentemente, ao passar por Soledade, tomei um cafezinho e perguntei pelo meu amigo Prof. Juarez Filgueiras de Góis e me foi dito que ele, no avançar dos anos, está com a saúde debilitada, aos cuidados da família na capital. Juarez é um dos fundadores e esteve à frente da Fundação Casarão Ibiapinópolis (antigo nome de Soledade), um museu vivo que para a minha satisfação tem hoje Ivanildo Gomes como diretor e Fernando Luiz como secretário. Fernando tem feito um importante papel no acervo higienizando documentos, fotografias antigas e a intenção de Ivanildo é promover um calendário de eventos como um dia já houve. Em seus dezoito anos de criação, participei de muitos eventos, saraus poéticos, exposições e a visitação de muitos alunos das escolas municipais.

 

Em meados de fevereiro, consegui o contato de Ivanildo e de maneira muito fraterna relembramos aqueles anos. Ele continua produzindo filmes, o último que dirigiu – Meu chão – está na plataforma Youtube. Continua pescando, gerencia uma horta comunitária e dirige a Fundação Casarão Ibiapinópolis. Ah se todo município tivesse um visionário como Ivanildo, pescando cultura, peixes e semeando sonhos.

 

Leia, curta, comente e compartilhe com quem você mais gosta!

 

Publicado na coluna ‘Crônica em destaque’ do Jornal A UNIÃO em 22 de fevereiro de 2025.

 

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*Nota: Na produção dessa crônica, conversei com Fernando e fiquei sabendo que a saúde de Inocêncio Nóbrega estava muito debilitada. Na última quinta-feira (21 de maio de 2025) ele, infelizmente, faleceu e a cidade de Soledade se tomou de luto.

 

No Instagram em 15/maio/25 postei: https://www.instagram.com/p/DJsgGrfsYH7/?img_index=1

 

Adeus Inocêncio Nóbrega

 

O economista e pesquisador Inocêncio Nóbrega Filho nasceu em Soledade-PB. Estudou no Liceu Paraibano e na UFPB. Foi preso e perseguido pela Ditadura Militar, quando perdeu os direitos estudantis. Na @assembleiapb foi Taquígrafo e se aposentou.

 

⏳Em 1974 escreveu ‘Malhada das Areias Brancas: ou história de uma cidade’ sobre Soledade. Também lançou uma obra em 3 volumes sobre a Independência “no Grito e na Raça”. Deixou a ser lançada uma obra sobre as três cidades homônimas: Soledade (Soledade do Sul, Soledade de Minas e Soledade-PB).

 

Fundou o ‘Inst. de pesquisas 24 de Setembro’ em Soledade e a Biblioteca Municipal ‘Augusto dos Anjos’ na década de 1960, também pesquisou o patrimônio arqueológico do município com nosso amigo antropólogo Carlos Alberto Azevedo. Na política, foi vereador suplente assumindo vaga com o falecimento do Vereador José Alves de Miranda em 1972.

 

O conheci em 2007 em uma reunião do Instituto Histórico e Geographico do Cariry Parahybano apresentado pelo amigo e confrade Prof. Daniel Duarte e, desde então, nos comunicávamos sempre. Com sua fidalguia, me tratava por “Estimado Thomas” ou então “Meu nobre Historiador”. Assim comentava minhas crônicas e as coisas do cotidiano, sobretudo o que se passava na política do país. Sempre me aconselhava.

 

Na última madrugada ele partiu, fez sua última viagem e no mês passado eu conversava com o amigo @pocost Fernando Luiz sobre a piora de sua saúde. Comentei com Daniel, lamentamos. Fica aqui seu exemplo de paixão e dedicação pela história e cultura de sua terra. Como disse Daniel: “A Parahyba fica menor, o Cariri fica menor”. Que Deus dê o céu a Inocêncio, como dizia Carlos Azevedo, o nosso Dom Quixote, o amigo “Cencim”.

 

Encontro com Inocêncio Nóbrega em 22/Set/2007, Soledade-PB.

✍- Com informações de Fernando Luiz

– Nosso 1° encontro em 22/Set/2007 em sua terra natal.

 

Filme “Meu chão”:

 

“O Velhinho do roçado”:

 
 

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