Em retrato do passado
Quase ninguém mais diz que vai “tirar um retrato”, tampouco pergunta “quantas chapas ainda tem a máquina”. Isso era assunto dos tempos da Kodak, bem que se ostentava nas mãos de quem tinha posses, também usada como presente de debutante, ao completar seus quinze anos, em festa fotografada nos clubes da alta sociedade da cidade. Pouco a reclamar, os álbuns eram cheios de retratos, médios, grandes e pequenos. Retirar o filme da máquina era uma perícia para pouca gente, parecia uma tarefa de alta tecnologia; uns a faziam num quarto escuro para não queimar o filme, que pomposamente se chamava de película.
Pobre não tinha máquina fotográfica. Às vezes, essa gente do povo alegrava-se em ser objeto retratado por algum pesquisador ou escritor para ilustrar algum livro, e mais comumente por jornalista para dar maior explicação à notícia de jornal. Mas, Baitana, sapateiro do Seminário, morava no Baixo Roger, perto da Penitenciária, e por lá, arrumou uma velha máquina que tirava nossas fotos, de 3×4 àquelas de pose, que eram censuradas pelo Padre Fernando Abath, como excesso de vaidade. Baitana era surdo-mudo, mas se entendia muito bem com todos nós sobre esses negócios. Os fotografados esperavam uma semana para ver a revelação; sem muita nitidez, mas era o que se poderia obter de Baitana, que aprendera tal ofício com um policial aposentado. Pobre também tirava retrato, nas grandes feiras do interior, 3×4, geralmente como lembrança ou para pregar em algum documento. Já na Capital, habitualmente na Praça Venâncio Neiva, onde estacionavam os ônibus esperando sua vez para sair da Rodoviária na Praça Pedro Américo, encontravam-se os fotógrafos das lambe-lambe, câmeras caixotes, apoiadas num tripé, muito parecidas com as câmeras dos idos de 1800. Hoje é uma atração histórica, mas ainda funciona.
Retratos da Vida é título dado, por aqui, ao filme Les uns et les autres, belíssimo longa metragem, do francês Claude Lelouch, sobre como viveram as profissões na guerra, as traições, as mortes e os amores, entre alegrias e sofrimentos, durante as batalhas da II Guerra Mundial. Mal traduzido o título, mas bem adequado ao filme. Porque retrato sempre conteve palavras, vida, expressões, sentimentos, só faltava se movimentar, o que, com a cinesis, evoluiu ao cinema. E cinema é isso: retratos em movimento…
O retrato congela o tempo, as circunstâncias, os espaços e as pessoas, tornando-se também motivador do relato da história das coisas que ele mostra, inclusive retratações. Nas costas de alguns deles, encontra-se até poema escrito por apaixonado, deixado pelo amante à amada ou pela amada ao amante, como confissão da própria paixão, testemunhada por fisionomias, sérias ou sorridentes, com palavras, nessas “dedicatórias”, que não calavam o amor. Umas até que marcavam noivado ou prometiam o acerto do casamento… Mesmo aos enamorados distantes, sem problema, o retrato encurtava a distância, naqueles tempos sem telefone, tampouco smartfone. Agora, com esta novidade, multiplicam-se as selfies, dentro ou fora dos WhatsApp, diferentemente do retrato, banalizando-se esses encontros, em repetidos “oi”, se ainda existir namoro… É mais fácil amar, ao contrário, o retrato e também a carta experimentavam uma sensação de surpresa, de uma experiência amorosa, inspirando desejos. Sim, olhar o retrato excitava ao desejo. Assim, o retrato falava e conseguia aumentar ou diminuir tanto a distância como a saudade. E ainda hoje, ele diz muito mais do que o espelho…